O P. Samuel Fritz fundou Fonte Boa, nas margens do Rio Solimões, em 1679, numa terra de dez grupos indígenas diferentes. A cidade seria erigida em 1938 e a Paróquia, dedicada à Senhora de Guadalupe, em 1892. Os Espiritanos ali aportaram em 1898 e eu lá cheguei, de lancha, no passado 9 de Julho. Sim, há muitos meios de transportes nestes rios e igarapés amazónicos: catraia (táxi fluvial), baleeira, rabeta, barco recreio, lancha, voadeira, tronco, canoa, são alguns dos nomes que ouvi por cá, para todas as distâncias, tamanhos, qualidades, feitios, confortos, preços e velocidades. Estão preparados para cruzar estas imensidões de água a entrecortar a floresta. O município de Fonte Boa é enorme, com quase 12 mil kms 2 e confina com Uarini, Juruá, Jutaí, Tocantins, Japurá e Maraã. Nestas distâncias fluviais, tudo se mede em dias e horas de barco, mas eu simplifico: está a 1011 kms de barco de Manaus.
Cheguei de noite e fui levado, aos saltos – tal o mau estado da estrada – do porto à Paróquia. Calor e chuvas torrenciais habitam juntos nesta terra e nesta estação do ano. Comecei por participar num grande encontro de jovens no Centro Cultural Taracuatiua. A minha visita coincidiu com uma missão liderada pela família Mercedária, de uma vintena de padres, irmãs, irmãos e leigos, a convite do P. Mário, o pároco. Fui dali com o P. Ambrose, espiritano nigeriano, rumo ao bairro periférico de Santo António, para a Eucaristia vespertina. No domingo, pude acompanhar o P. José Augusto, de Cabo Verde, à comunidade de S. Francisco. Ambas as comunidades estão na periferia de Fonte Boa.
O momento mais emocionante vivi-o na visita missionária à Comunidade de Santa Maria – Água Branca, Rio Panauã. Foi toda a equipa missionária, uma trintena de pessoas. A viagem de barco durou 2 h de cortar a respiração. Começamos no grande Solimões e entramos para ‘furos’ (ou seja, atalhos) no meio de uma luxuriante floresta, onde o barco parava porque havia árvores enormes atravessadas, ou porque se duvidava da profundidade das águas, uma vez que a estação das chuvas acabou e a floresta, completamente alagada (cheia de gapós – áreas submersas), começa a ter terra firme. Os olhos ficam a vibrar com tanta beleza, mas os medos também imperam: vêem-se jacarés nas margens ou a mergulhar à nossa beira, cobras, macacos e preguiças nas árvores e todo o tipo de aves, desde garças a mergulhões.
Chegamos extasiados a um rio mais largo onde está construída, flutuante, uma comunidade com 18 famílias. Quando ali chegamos, fomos recebidos com foguetes, bandeirinhas e muitas canções e danças, pois esta vintena de missionários vinham ali passar dois dias e participar na inauguração da nova Capela, obra de complexa engenharia, pois está construída sobre águas que sobem e descem vários metros durante o ano. A larga mesa, sempre com águas à vista, mostrava os pratos mais típicos, sobretudo de peixes locais. Mas o que espantava era o facto de pessoas muito idosas e crianças de tenra idade andarem à vontade em cima de pranchas e mergulharem sem medo naquelas águas profundas. Quando perguntei pelos jacarés, cobras e piranhas, tão numerosas na área, disseram logo que só havia perigo quando as águas descessem. Eu, pelo sim pelo não, tomei as minhas medidas cautelares. A Missa foi festiva com alguns batismos e a noite foi de forró. Bem tentei dormir um pouco, num quarto cheio de redes e gente, mas a luta foi grande contra o barulho, o calor e a quantidade de insectos que aproveitaram sangue novo para alinhar na festa! Com a vinda da noite, aparecem em quantidades industriais, o mutucu (mosca que ferra a sério e nos põe a coçar uns tempos! ) e os carapanãs, nome dado a várias famílias de mosquitos que, entre outras coisas, nos ‘oferecem’ dengues e zicas, doenças muito difíceis de combater.
A manhã de terça vivi-a com outros missionários, numa pequeníssima comunidade a meia hora dali: Aratizau. Celebramos a Missa de São Bento e dali regressamos a Água Branca, sempre a olhar as árvores frondosas e a muita bicharada que nos entravam pelos olhos dentro, parecendo estar a fazer uma visita guiada ao Jardim do Éden, naquela manhã da Criação.
Voltamos a Fonte Boa de olhos e coração cheios. As águas vão descendo e os perigos de navegação aumentam. Ainda apanhamos alguns sustos, com troncos de árvores escondidos, com o banzeiro (ondulação) ou com a visão de jacarés a apanhar sol nas partes da floresta já com terra firme.
O melhor do mundo são as pessoas. Encontramos gente com Fé, de braços abertos, mas a viver as consequências da distância e do abandono a que as populações ribeirinhas sempre foram votadas. Ali quase ninguém vai, o povo vive da pesca e da floresta, com um grande respeito pelos rios e lagos que os sustentam. Quem ali vai, como eu, percebe melhor o grito do Papa Francisco: ‘Tudo está interligado! É necessário proteger a Mãe-Terra, a nossa Casa Comum!’.
Gostei da narrativa de Tone Neves, conheço as circunstâncias destas viagens na Amazônia. Parece que eu estava junto, formidável.