Os últimos tempos têm sido de aflição. O mundo viu, atónito e aterrado, acontecer na Europa o que acreditava inteiramente ultrapassado e próprio de tempos de barbárie e irracionalidade: a invasão da Ucrânia pela Rússia tornou-se todos os dias o assunto do dia e a catadupa de consequências trágicas que gerou encheu o mundo de sentimentos de medo e insegurança.
É verdade que uma vida humana é sempre uma vida humana, com a mesma dignidade, a mesma sacralidade inviolável e, por isso, uma criança morta, em Damasco, em Khartoum ou em Kiev, é sempre uma criança morta; e isso é sempre horrível. Gente oprimida e violentada é sempre um escândalo incompreensível e inaceitável, seja nas águas do Mediterrâneo, seja nas cidades devastadas da Ucrânia. O facto de os acontecimentos da guerra na Europa serem à porta da nossa casa, com gente culturalmente muito próxima, explica parte do horror generalizado. Mas também o impacto mundial que esses acontecimentos produzem, de caráter social, político e económico, não é alheio à perturbação global, a que acresce a consciência de um efetivo risco de um conflito à escala mundial, com as consequências catastróficas que tal enormidade traria.
No meio desta atualidade tenebrosa, há luzes a sinalizar um outro horizonte, que nos permitem continuar a acreditar na vitória do bem. Talvez uma dessas principais luzinhas seja a da intolerância ocidental relativamente a tudo o que seja violência gratuita, invasão dos direitos fundamentais e impunidade de atos bárbaros de caráter arbitrário e profundamente egoísta. Se as causas da indignação global estão à vista, é verdade que essa indignação com a violência não deixa de ser um sinal de progresso, que manifesta uma civilização incapaz de conviver com a irracionalidade, a violência e o despotismo.
Estados soberanos a invadir estados soberanos, guerras fratricidas em nome de pretensos direitos à hegemonia de uns sobre outros, sempre os houve. Gente a recorrer à força da violência e não dos argumentos, é o que não falta em milénios de história. O que talvez nunca tenha havido à escala global é a intolerância com isso, a incapacidade de o aceitar sem mais. E isso é com certeza um sinal luminoso, no meio da escuridão destes tempos difíceis que vivemos.
Outro sinal luminoso é a onda de solidariedade sem fronteiras que varreu a Europa: milhões de deslocados têm encontrado, um pouco por toda a Europa (sobretudo nos países vizinhos da Ucrânia, mas também nos mais distantes, como o nosso), acolhimento, esforços conjuntos, gente unida em torno do ideal da justiça, da hospitalidade, da humanidade.
Homens e mulheres que se levantam diante da violência, em nome da honra e da justiça, para defender os seus direitos com bravura e abnegação acrescentaram respeito aos olhares do mundo que procura juntar-se para resistir à selvajaria da guerra. É talvez aqui que a nossa consciência cristã se obriga a repensar a sua tradição ética que fala de “guerra justa”, não para imputar justiça a algo intrinsecamente mau, como a guerra, mas para reconhecer a terrível complexidade de dever relacionar-se com a guerra injusta com uma legítima defesa, essa sim justa e necessária.
Passámos a Quaresma mergulhada nestes noticiários. Que a grande luz da Páscoa, sinal infalível da vitória do Bem, no reponha no olhar esta certeza maior que nos arranca da aflição e nos devolve à alegria da esperança: Cristo venceu a morte e, nEle e na sua Boa notícia para sempre eficaz, também nós a podemos vencer.