Acontece, este ano, que a Quarta-Feira de Cinzas se celebra três dias depois do Dia Mundial do Doente, que ocorre a 11 de Fevereiro. Os dois eventos sempre têm honras de uma mensagem do Papa aos cristãos e a pessoas de boa vontade. Cruzando as duas mensagens pontifícias parece que estamos perante uma contradição. Vejamos: o Dia Mundial do Doente tem como lema: «Não é conveniente que o homem esteja só» – cuidar do doente, cuidando das relações; a mensagem da Quaresma tem como título: «Através do deserto, Deus guia-nos nos para a liberdade». Não é o deserto terra de isolamento e solidão não desejada? Por outro lado, não é necessidade vital nossa, termos um estilo de vida tecido de relações?
Ao lembrar a experiência do povo de Deus no deserto, o Papa Francisco recorda-nos que todos carregamos vínculos opressivos que nos roubam a esperança e, como o povo de Israel, experimentamos a sensação de nos faltar uma terra prometida que nos puxe para a frente. Ele fala de um detalhe de não pequena importância: é Deus que vê, que se comove e que liberta, não é Israel que o pede. É que Deus não se cansa de nós.
Ao contemplar o processo criador de Deus – “Não é conveniente que o homem esteja só” – reparamos que, desde o início, Deus, que é amor, criou o ser humano para a comunhão, inscrevendo no seu íntimo a dimensão das relações. Assim a nossa vida, plasmada à imagem da Trindade, é chamada a realizar-se plenamente no dinamismo das relações, da amizade e do amor mútuo. Por isso, a experiência do abandono e da solidão atemoriza-nos e agrava-se ainda mais no tempo da fragilidade, da incerteza e da insegurança, causadas muitas vezes pelo aparecimento de alguma doença grave. A cultura do individualismo, própria do nossos tempo, que exalta a produção a todo o custo e cultiva o mito da eficiência, torna-se cultura do descarte, na qual «as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se “ainda não servem” (como os nascituros) ou “já não servem” (como os idosos)» (Fratelli tutti, 18).
A experiência de deserto lança-nos para aquela liberdade que nos faz contemplar esta verdade central da nossa vida: viemos ao mundo porque alguém nos acolheu, somos feitos para o amor, somos chamados à comunhão e à fraternidade. Esta dimensão do nosso ser sustém-nos sobretudo no tempo da doença e da fragilidade, e é a primeira terapia que todos, juntos, devemos adotar para curar as doenças da sociedade em que vivemos.
A Quaresma é o tempo de graça em que o deserto volta a ser o lugar do primeiro amor e nós sabemos bem que o amor de Deus e do próximo formam um primeiro e único amor. A esta luz entendemos como “cuidar do doente significa, antes de mais nada, cuidar das suas relações, de todas as suas relações: com Deus, com os outros – familiares, amigos, profissionais de saúde –, com a criação, consigo mesmo”. É possível? Sim, é possível e a Quaresma é um caminho a percorrer para que tal aconteça».