Tive a alegria de fazer o meu estágio missionário na África do Sul. Já lá vão 25 anos. Mas as memórias continuam vivas. A nossa casa, em Lamontville, nos arredores de Durban, ficava bem no centro de uma aldeia de população negra, algo impossível há não muito tempo atrás. A casa, pensada pelo P. José Manuel Sabença, era um pouco a sua imagem: a maior parte da casa consistia num grande espaço aberto de oração, trabalho, encontro, lazer… a porta só se fechava na hora de dormir. E a minha comunidade, que contava com um missionário alemão já com muitos anos de vida e missão e um jovem missionário congolês, era um pouco a imagem da nossa congregação na altura.
Há dias, apareceu-me na caixa de correio uma mensagem que me fez viajar até Lamontville. Eamon Nolan, um antigo espiritano, que viveu e trabalhou com o P. José Manuel, entre 1992 e 1995, quis partilhar com os nossos leitores uma memória da sua missão. No dia 10 de abril de 1993, viajava com o P. José Manuel no carro, a caminho de Lamontville, onde os espiritanos se estavam a estabelecer, contornando as regras do apartheid. Naquele dia, um famoso líder negro chamado Chris Hani tinha sido assassinado por um sul africano branco, dando origem a manifestações violentas um pouco por todo o país.
“Ao entrarmos na povoação – conta o Eamon – deparamo-nos com uma multidão enfurecida, de cerca de 50 pessoas, sobretudo jovens rapazes, armados com facas e lanças, a dançar na rua, bloqueando a nossa passagem. Rapidamente rodearam o veículo gritando ‘bulala abelungo’ que, em zulu, significa ‘matem os brancos’. O P. José virou-se para mim e, apertando a minha mão, sorriu e disse: ‘Foi um prazer conhecer-te, Eamon’. Ele estava calmo, composto e até bem-humorado perante o perigo. Empurraram as pontas das suas lanças para dentro do veículo, contra os nossos pescoços, e depois José falou-lhes num belo zulu (ele era linguista e falava muito bem zulu, utilizando provérbios, canções e ditados antigos). Explicou porque estávamos ali e o amor que Deus tem por todos nós, tal como demonstrado pelo Seu Filho Jesus.
Estávamos numa zona do Congresso Nacional Africano e eles estavam em conflito com outro partido político chamado Zulu Inkatha, liderado por MR Buthelezi. As suas cores eram o verde e no banco. Tínhamos um cachecol verde e branco do Celtic, que pertencia ao Padre Peter Lafferty, espiritano escocês. O Padre José conseguiu falar de futebol com a multidão furiosa que estava à volta do carro. Com uma mistura de ensinamentos religiosos e conversas sobre futebol, a multidão, antes zangada e ruidosa, passou a ouvir e o ambiente mudou. Saudaram-no e seguiram em frente, cantando e dançando, deixando-nos ilesos. Nesse dia, 10 de abril de 1993, foram feridas pessoas e danificadas propriedades em toda a África do Sul. Olhando para trás, penso que devo a minha vida ao P. José.
Provavelmente, ele nunca partilhou esta história, ou minimizou-a, mas, à medida que vou envelhecendo, quero que as pessoas saibam como este homem era corajoso e santo.”
Num mundo dividido, zangado e ruidoso, o P. Zé Manel inspira-nos a não nos deixarmos tolher pelo medo e a colocar o amor de Deus no centro dos nossos encontros, transformando tensão em fraternidade.
Na foto: P. José Manuel Sabença e Eamon Nolan celebram a Via-Sacra num hostel, na periferia de Durban, África do Sul.