«Que vês, Jeremias?»
(Jr 1,11)
Em Jr 1,9-12, onde a vocação de Jeremias é tecida em forma de diálogo, descobre-se que a vocação antes de ser pessoal é divina. Jeremias sente-se, assim, chamado, melhor dizendo, tocado, para uma missão que se adivinha difícil. A missão que lhe é dada não ganha força nem nos substantivos nem nos adjetivos. São as formas verbais – seis no infinitivo – que causam impacto e projetam Jeremias para um infinito deixar-se conduzir pela mão de Deus que o toca nos lábios. Essas formais verbais que irrompem o tempo e o espaço de Jeremias e lhe abrem um novo tempo e um novo espaço, simplesmente porque ele se deixou tocar pela ação divina.
À primeira vista, a missão de Jeremias apresenta-se ingrata, espinhosa, arrasadora, quase catastrófica. Primeiro destruir, e muito; só depois construir, um pouco. Mas Deus que se lembra de Jeremias desde o seio materno, não se fica por lhe dar uma missão, ousa dirigir-lhe a sua Palavra para saber se Jeremias conhece verdadeiramente Aquele que o ama e constitui profeta. Eis, então que surge uma pergunta tão comprometedora quanto a própria missão: “Que vês, Jeremias?” (Jr 1,11). Grande ousadia a de Deus! Perguntar a alguém sobre o que vê é depender da qualidade da sua visão. É abrir-se a uma perspetiva diferente. É, porventura, deixar-se desinstalar pela visão do outro.
Jeremias tinha tudo para destilar medo, dor, queixume, amargura e incerteza. Um coração que acolhe tão dura e exigente missão só pode estar dorido. Enganamo-nos. Jeremias que se deixou transformar pelo toque da Palavra de Deus, deixa que ela lhe abra as perspetivas do seu olhar. Não fica, portanto, cego pela carga negativa dos verbos que o enviam em missão. Bem pelo contrário, ganha a capacidade de uma visão 3D, uma visão a três dimensões. Só assim consegue ver florir uma amendoeira no meio da miséria, da ruína e da morte, num mundo sem Deus.
A perspetiva principal é sempre a daquele que vê: “Que vês, Jeremias?” (Jr 1,11). Mas as coordenadas são orientadas através do diálogo orante com Deus e através do diálogo fraterno com os outros: “Viste bem” (Jr 1,12). Como Jeremias, ergamos os olhos da invernia da incerteza e fixemos o olhar lá longe, ou aqui bem perto, na sempre frágil e forte flor da esperança que a amendoeira representa. Não procuremos adjetivar a nossa missão; esperemos, contudo, que Deus qualifique a nossa visão de boa, bela e que produz o bem.
Estaremos nós predispostos a deixar que Deus afine o nosso olhar para ver sempre bem, belo e bom? Estaremos nós disponíveis a dar altura à nossa visão, colocando-a à dimensão divina, e a dar-lhe profundidade, colocando-a à dimensão humana? Estaremos nós verdadeiramente ordenados a entrar na arte de ver a três dimensões a nossa missão que não se deseja plana mas global?
Estaremos nós predispostos a deixar que Deus afine o nosso olhar para ver sempre bem, belo e bom?
Com Poullart de Places, rezemos:
“Ao reconhecer o vosso poder, reconheço também o vosso amor! Amais-me, meu divino Salvador, e dais-me disso provas bem claras. Eu sei que a vossa ternura é infinita, pois não se esgotou com as inumeráveis ingratidões que tantas vezes manifestei diante de Vós. Há muito tempo que me quereis falar ao coração, e há muito tempo também que eu recuso escutar-vos. Quereis convencer-me de que vos quereis servir de mim para as tarefas mais santas e religiosas, mas eu esforço-me por não acreditar em Vós. Se a vossa voz, por vezes, causa alguma impressão em mim, logo a seguir o mundo apaga os sinais da vossa graça. Há já quantos anos trabalhais para reconstruir o que as minhas paixões continuamente destroem! Sei que desta vez não quereis combater em vão e já declarastes que se proclame a vitória da escolha acertada. […] Não vim aqui de forma alguma para me defender, vim só para me deixar vencer”.
(Antologia Espiritana, I p. 25)