«Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?»
(Mc 4,35-41)
O dia já ia longo para Jesus. De um lado do lago, ouvimo-lo falar à multidão acerca do Reino de Deus através de parábolas (Mc 4,1-34). Do outro lado, é esperado de forma especial por um homem possesso (5,1-20), uma menina jazente no leito de morte e uma mulher que há 12 anos sofre de um fluxo de sangue (5,21-43). Agenda cheia, não de trabalho, mas de sentido. Num só dia, Jesus ensina-nos que a força do Reino de Deus se manifesta tanto através da novidade das suas palavras reveladoras, com da novidade dos seus gestos salvíficos.
E eis que, alimentados pela sua Palavra, constatamos que Jesus, no barco, convida os discípulos a passarem com ele de uma à outra margem, das parábolas à sua aplicação, da palavra ao ato: “Passemos para a outra margem” (4,35). Imaginemos as reações daqueles homens: como é possível alguém querer passar para a outra margem, precisamente para o lado onde habitam os pagãos? E tem de ser mesmo para a margem onde homens moram em cavidades formadas nas rochas… onde varas de porcos passeiam à beira mar… e onde mulheres impuras caminham por entre a multidão? Não podemos ir para uma outra margem? Temos mesmo de ir para o meio daqueles marginais e marginalizados?
O medo habita o coração dos discípulos… mas, estando Jesus no barco donde tinha falado à multidão, lá vão eles mar adentro. Forma-se, então, uma tempestade naquele lago, isolado de tudo e de todos, abaixo do nível da água do mar. Naquelas águas que morrem em si mesmo por não terem ligação com outros mares ou oceanos. Assim é o lago de Tiberíades ou mar da Galileia. Assim somos nós, por vezes. Mas o cruzamento dos turbilhões vindos do Mediterrâneo com os ventos que sopram do deserto siríaco, em nada é comparável aos ventos e mares que se formam no interior de cada um dos discípulos que segue no barco. Quanto aos discípulos, marinheiros por profissão, já com água pelos joelhos, temem pela vida.
Os discípulos recordam-se, então, de Jesus que, qual homem do leme, segue à popa, na parte traseira daquele barco. Aqueles marinheiros feitos discípulos por vocação recorrem ao Mestre, não tanto por acreditarem na sua perícia marítima, mas porque não suportam mais vê-lo dormir tão confiadamente recostado na almofada do assento reservado ao comandante do barco: “Mestre, não te importas que pereçamos?” (4,39). Jesus levanta-se, então, e, sem lhes dirigir palavra alguma, fala imperiosamente com o vento e ao mar como se a demónios se dirigisse: “Cala-te, acalma-te!” (4,39). Depois, voltando-se para os discípulos, transforma a pouca fé em confiança: “Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?” (4,40) Nasce, assim, no seio daqueles discípulos, a pergunta sobre a identidade daquele homem. Nasce, assim, um caminho de descoberta da Palavra feita carne que invoca e provoca.
Esta tempestade naquele lago e naqueles corações recorda-nos todas as nossas tempestades de copo de água e de pouca dura. Todas aquelas vezes em que resistimos a passar para o lado do outro que nos chama, não só para não queremos trair ideias e princípios pessoais, mas porque, pensamos nós, daquele lado não pode vir nada de bom. Por vezes, seguimos numa barca de casca de noz, fabricada à medida das perspetivas do nosso olhar… e à mínima agitação, a vibração é grande.
Confiança! Jesus permanece no comando da nossa barca, ainda que pequena, e da nossa vida, ainda que turbulenta. Não raras vezes nem nos apercebamos da serenidade da sua condução. Deixemo-nos interpelar pela almofada onde Jesus ensaia um sono sereno. Ela marca, não só o seu cansaço, mas sobretudo o tom doce e tranquilo deste condutor diferente da nossa vida agitada: “Se me colhe a tempestade e Jesus vai a dormir na minha barca, nada temo porque a Paz está comigo”. Deixemo-nos interpelar por Aquele que fala, faz, chama, ordena e vela por nós, orientando a nossa barca, deitado tranquilamente à popa. O seu sono sereno há de serenar a nossa tempestade de ideias e de projetos, de dúvidas e de incertezas, de medos e descrenças.
Estaremos nós predispostos a nos deixarmos tranquilamente guiar pela Palavra de Deus? Estaremos nós disponíveis a adotar a atitude confiante de um verdadeiro discípulo? Estaremos nós verdadeiramente ordenados a passar confiadamente para a outra margem?
Estaremos nós predispostos a nos deixarmos tranquilamente guiar pela Palavra de Deus?
Com Libermann, rezemos:
“Para seu modo de agir em geral. Um navio tem velas e leme. O vento sopra nas velas e faz avançar o navio na direção pretendida; por conseguinte, são as velas que o fazem andar e seguir numa dada direção; no entanto, essa direção poderia ser demasiado vaga e poderia, por vezes, levar o navio a desviar-se do seu rumo, sem, contudo, o perder de todo. A sua alma é o navio, o seu coração é a vela, o Espírito Santo é o vento; ele sopra na sua vontade e a alma avança, avança na direção traçada por Deus; o seu espírito é o leme que deve impedir que, na força e vivacidade do movimento dado ao seu coração, você se desvie do rumo certo traçado pela divina Bondade”.
(Antologia Espiritana, I p. 172)