Mia Couto escreve, mês após mês, um texto na revista Visão. Nestes dois últimos anos, o tema inevitável é a pandemia, como o que dá o título ao livro. Mas também aborda o terrorismo no norte de Moçambique, a antiga guerra colonial e até o actual derrube de estátuas. Escolheu alguns destes textos, arranjou-os para publicar em colectânea e eis o resultado!
São 172 páginas de puro deleite literário, bem ao estilo a que o autor habituou os seus muitos leitores. Textos curtos, mas incisivos. Às vezes, ingénuos mas só aparentemente. Ao todo, 26, com títulos para todos os gostos. Todos diferentes, todos provocadores, quer pelos valores que propõe, quer pela arte narrativa e criatividade que transportam e oferecem a quem lê.
Deixo, como incentivo à sua indispensável leitura, alguns recortes:
‘Conheço bem essa doença. Chama-se indiferença. Era preciso um hospital do tamanho do mundo para tratar essa epidemia’ (p.16).
‘A pandemia faz-nos prisioneiros sem cárcere, cria uma nação feita de culpa e de medo’ (p.18).
‘No fundo da mina é sempre noite. A mesma noite. Por baixo da areia o tempo enrosca-se como fazem as sementes’ (p.37).
‘Não havia casa que não estivesse de luto, não havia chão que não estivesse manchado de cinzas e sangue. E as estrelas eram buracos de bala num manto escuro’ (p.51).
‘Agora esgravatar o chão para desenterrar o tempo? Não cabe na cabeça de ninguém. O homem queria encontrar o passado? Procurasse dentro das pessoas. Escutasse conversas entre os vivos e os mortos’ (p.69).
‘No fim das suas forças, o meu pai cingiu-me as mãos com o mesmo desespero com que antes apertara o gatilho da espingarda’. (p.97).
‘As doenças não se trazem, disse o meu avô. Acendem-se. É como o fogo: a palha já lá está, o fósforo chega sem sabermos como’ (p.111).
‘Celestina bordava para suturar alma. Na caligrafia dos fios enviava recados secretos para a mulher que sonhara ser’ (p.157).
Ed. Caminho /Leya, 2021