O autor, biólogo-escritor, leva-nos até ao norte de Moçambique onde o enorme Rio Rovuma faz fronteira com a Tanzânia. Mia Couto transporta-nos até ao longínquo 1914 e é de opinião que o assalto alemão, a partir da Tanzânia, que matou 12 pessoas no posto militar português de Madziwa, está na origem da Primeira Grande Guerra Mundial no continente africano. O romance evoca ainda a ‘Revolta dos Maji-Maji’, realizada entre 1905 e 1907 contra a cultura forçada do algodão, onde as tropas alemãs mataram entre 200 e 300 mil camponeses! Mas que massacre tão abominável! Na nota final do livro, o autor lembra que, segundo números oficiais de 1919, as campanhas africanas desta Guerra provocaram 148 212 mortos, só em Angola e Moçambique!
Sempre criativo
Mia Couto habituou-nos à sua escrita criativa, mas também a uma reflexão sobre a humanidade e as atitudes que põem em causa a dignidade e os direitos das pessoas. A obra divise-se em 14 capítulos e 93 números. Tem diversos protagonistas que, em muitos momentos, falam na primeira pessoa. Cada um dos números começa com uma citação de um autor ou um provérbio. Para não contar a história e não estragar a leitura deste romance, limito-me a provocar os ouvintes e leitores com frases que destaquei deste novo livro, nascido em terras de Moçambique: ‘Em África o chão é muito antigo, mas os caminhos são sempre recém-nascidos. A razão é simples: os carreiros desaparecem na estação das chuvas’ (p22); ‘Ninguém pode viajar sem visitar as pessoas. Os que moram no caminho são o próprio caminho’ (p41); ‘A grande questão para quem foge não é o destino. É até quando terá de fugir’ (p.42); ‘O que mais me tira o sono é saber que os que mandam em tudo já perceberam que não têm o controlo de nada’ (p.80).
‘Em África tudo é caminho. Porque tudo termina e tudo começa em cada estação do ano’ (p.86); ‘Não sabem que, em certos lugares, partir é uma sentença e voltar é um milagre’ (p.106); ‘O passado já não existe. Não existe nem para te proteger, nem para me ameaçar’ (p.107); ‘Escreve mesmo depois de deixar de haver palavras’ (p.108); ‘Quem não respeita as mulheres não pode amar nem ser amado pela vida’ (p.109); ‘Os bichos são iguais às pessoas: os que não pedem favores são donos da sua vida’ (p.120).
Histórias difíceis
‘Os sentimentos são como roupa a secar ao sol: apenas os pobres exibem essas intimidades em público’ (p.124); ‘Ao escrever, ele voltava a pôr o mundo em ordem’ (p.125); ‘Há três modos de sair da guerra: morto, herói ou sobrevivente’ (p138); ‘Agora tenho de descansar. Foi tanta viagem que os meus pés ganharam alergia ao chão’ (p.141); ‘São precisas duas pessoas para que haja silêncio’ (p.148); ‘Que um rio só é eterno porque vive de outras águas. Solitários, os rios adoecem’ (p.148); ‘Um soldado olha o mundo devagar. Sabe que pode ser a última vez’ (p.152); ‘Ninguém vai para a guerra. Estamos dentro dela, sem darmos conta’ (p.160); ‘Vocês europeus dançam aos pares. Nós dançamos com o mundo inteiro’ (p.185); ‘Deixei para o fim a doença que mais me intrigava: a cegueira dos rios’ (p.222); ‘Nas grandes tragédias, quando as vítimas são demasiadas. Ninguém se dá ao trabalho de as contar. E o que não se pode contar converte-se em nada’ (p.226); ‘A vida é uma corda sem ponta: água numa extremidade e areia na outra’ (p.252); ‘És descendente de um grande combatente. O teu pai deu a vida pela vida dos outros’ (p.313); ‘Lavámos os rios, apagámos as cinzas, desamarramos as nuvens’ (p.318).
Provérbios vitais
‘A tua boca é o teu pior inimigo (provérbio Yao-p.30); ‘Os caminhos não dormem’ (provérbio Macua – p.46); ‘A faísca não tem medo do trovão’ (Provérbio Yao – p.83); ‘O rio vai sem água: como podes dormir? (provérbio Yao – p.149); ‘Apontei para as estrelas e tu não viste senão o meu dedo ‘ (provérbio Swahili – p.151); ‘Quem fica calado também fala’ (provérbio Yao – p.157); ‘A guerra entre gafanhotos é uma alegria para os corvos’ (provérbio Swahili – p.163); ‘A palavra é uma bala: não tem recuo’ (provérbio de Milepa – p.167); ‘Para quem é picado, o espinho nunca é pequeno’ (provérbio Macua, p.169); ‘Choraste pela chuva, agora chora pela lama’ (provérbio Yao – p.256); ‘Assim se confirmava: a agrafia convertera-se numa epidemia planetária’ (p.281).
Ed. Caminho, Lisboa, 2024.