Há 180 anos, Francisco Libermann instalou-se em Roma, numas humildes águas-furtadas – que os Espiritanos reconstruiram no jardim da sua casa geral – enquanto procurava dar corpo à obra missionária com que sonhava, voltada para a missão integral no continente africano. A fragilidade da sua saúde nunca o permitiu rumar a África, mas fica para a história a sua frase “o meu coração é dos Africanos”! Morreu a 2 de fevereiro de 1852, com apenas 50 anos, mas muito futuro rasgado.
Foi assim em Roma há 180 anos. Num sótão, Francisco Libermann, um jovem francês de 38 anos, foi ficando por aqui, entre oração e intervenções junto da Santa Sé, numa luta difícil par atingir um único objectivo: o apoio do Papa na fundação de uma obra missionária que permitisse a evangelização de África e a libertação total de todos os escravos. Só a ‘Propaganda Fidei’ podia dar luz verde a um projeto missionário (a ‘Obra dos Negros’) e Libermann, sem quaisquer recursos financeiros nem gente influente em que se apoiar, conta com a autorização para viver nesta mansarda, ali bem pertinho da Piazza Navona e das Igrejas de Santo Agostinho, Santo António dos Portugueses e São Luís dos Franceses.
Só deixaria Roma a 7 de janeiro de 1841, após um ano de intensas lutas. Nestas instalações geladas de inverno e quentíssimas de verão, escreveu textos decisivos para o futuro dos Espiritanos, incluindo boa parte do Comentário do Evangelho de S. João, que o Cardeal Tolentino Mendonça utilizou no Retiro que pregou ao Papa e à Cúria Romana em 2018. Por isso, quando Mussolini, nos meados do século XX, decidiu alargar algumas ruas de Roma, esta casa foi demolida, os Espiritanos desmontaram o sótão (a ‘mansarda’) e colocaram-na no terraço do edifício do Seminário Francês. Quando este foi entregue à Conferência Episcopal de França, decidiu-se pegar na mansarda e ‘reconstrui-la’ no Jardim da Casa Geral dos Espiritanos, onde se encontra, como memória deste segundo fundador e local de oração e inspiração.
Olhemos para o perfil de Francisco Libermann, falecido a 2 de fevereiro de 1852, em Paris. Ele nasceu na Alsácia, em 1802, numa família judaica. Com a contestação religiosa habitual na adolescência e juventude, acabaria por iniciar um percurso espiritual que o levou à Igreja Católica onde foi batizado. Daí a querer ser padre foi um passo que lhe traria muito sofrimento. Primeiro, porque o seu passado judaico lhe retirou o apoio da família, tão necessário para quem quer entrar num seminário; segundo, porque se lhe declarou uma doença que era impeditiva para a ordenação: a epilepsia. Libermann dava razão a Fernando Pessoa quando este escreveu que quando ‘Deus quer e o homem sonha, a obra nasce!’. Antes de ser padre, lançou-se na aventura de fundar uma obra virada para a missão integral em África, apoiado por dois jovens de origem africana. Teve que lutar muito contra a falta de saúde e por um projeto que parecia votado ao fracasso. Nunca deitou a toalha ao chão, conseguiu o ‘milagre’ da cura. Daí a sua estadia em Roma. Seria ordenado Padre a 18 de setembro de 1841 e a fundação da ‘Sociedade do Sagrado Coração de Maria’ foi celebrada em Paris, no dia 27.
Os seus primeiros missionários partiram para África a 13 de setembro de 1843, enviados para as Guinés. Aqui começa uma corajosa obra missionária que não mais parou. Muitos dos missionários morreram jovens, quer em naufrágios quer através de doenças tropicais. Mas nada o fez recuar, apesar da dor de alguns fracassos. A fragilidade da sua saúde nunca o permitiram rumar a África, mas fica para a história a sua frase ‘o meu coração é dos Africanos!’.
A sua Obra fundiria em 1848 com a Congregação do Espírito Santo e o P. Francisco Libermann é o primeiro responsável máximo desta nova Congregação, fundada por Cláudio Poullart des Places em 1703. Os envios de missionários sucedem-se e, bem depressa, outras fundações nascem na Europa para formar novos Padres e Irmãos que foram responsáveis pela criação e fortalecimento de muitas Igrejas locais na África e nas Caraíbas.
Morreria a 2 de fevereiro de 1852, com apenas 50 anos, mas muito futuro rasgado. Hoje, os Espiritanos são quase 3 mil e trabalham em mais de 60 países nos cinco continentes. São todos ‘filhos de Libermann e Cláudio Poullart des Places’. Sentem-se honrados quando figuras grandes como Leopold Senghor, pai do Senegal e da Negritude, diz que tudo o que é o deve ao P. Libermann e aos Espiritanos. Esta grande figura da cultura e da política africana gostava de citar um dos textos mais emblemáticos de Libermann quando este dava orientações aos missionários dizendo-lhes: ‘fazei-vos negros com os negros!’. Assim se abria o caminho para uma profunda inculturação do Evangelho e para um enriquecedor, porque respeitador, encontro de povos, culturas e expressões de Fé.
Vivo na Casa Geral dos Espiritanos, em Roma e todos os dias entro nesta ‘mansarda’ para meditar e rezar. É um local de silêncio e inspiração, apesar de estar junto à estrada e de ouvir o barulho do trânsito misturado com o chilrear da muita passarada que mora nestas árvores. Nesta ‘mansarda’, que era um pombal, o P. Libermann se inspirou para uma das suas orações mais emblemáticas, em que pede a Deus que sejamos ‘como leve pena’ ao sopro do Espírito.
Se há 180 anos, Libermann chega a Roma apenas ‘armado’ com uma Fé enorme e uma confiança na inspiração do Espírito Santo, hoje os seus filhos têm a responsabilidade de continuar a partir pelo mundo a anunciar o Evangelho, libertando os mais pobres de todas as escravidões que os desumanizam. Não é por acaso que os compromissos de justiça, paz e ecologia global são parte integrante da Missão Espiritana.