(Gn 11,1-9)
Depois das belas narrativas da Criação, encontramos a Humanidade entretida na sua visão gananciosa, invejosa e ciumenta. O primeiro olhar sobre o fruto condiciona o modo como passamos a olhar tudo aquilo que queremos possuir para nós, mesmo sem precisarmos. Este olhar provoca um movimento interior de fuga. A humanidade é então narrada a caminhar para oriente, o passado, o esquecimento, o lugar da fuga do Criador: Adão e Eva são expulsos do jardim do Éden e passam a habitar uma região a oriente do jardim (Gn 3,24). Caim, perdido na busca de si mesmo, dá início a uma viagem de fuga também para oriente (Gn 4,16). Finalmente, quando a humanidade está emigrada numa região a oriente (Gn 11,2), vemos que continua a caminhar para um vale da terra de Chinear. Este vale faz-nos pensar no vale dos ossos ressequidos de que nos fala o profeta Ezequiel. Ambos representam lugares de trevas e de morte, lugares onde a humanidade permanecerá ressequida pela inveja e pelos ciúmes. A marcha progressiva da humanidade para oriente e para o passado anula horizontes e, inevitavelmente, empurra a humanidade para a morte.
Na Sagrada Escritura, “oriente” é mais do que um ponto geográfico. Em hebraico, uma mesma palavra, qedem, significa oriente, passado e dianteira. Uma outra palavra, ´aHárôn, significa simultaneamente futuro, posteridade e traseira. Segundo esta lógica, somos convidados a avançar para o futuro, olhando para trás, para o passado que temos atrás de nós, abrindo, desse modo, novos horizontes e perspetivas relativamente à primeira experiência do Deus Criador.
No oriente de fuga, a barulheira causada pela construção da torre de Babel entra em concorrência com as doces interpelações da Palavra criativa de Deus. Os ouvidos do coração não se sentem mais interpelados pela primeira palavra criadora. Aquela torre, aproximando-nos do céu, anula a visão do Céu, porque o céu a que essa torre nos conduz é feito à nossa medida e não à medida de Deus. Mais ainda aqueles que têm “uma linguagem única e palavras únicas” (Gn 11,1) não estão dispostos a ter “um só coração e uma só alma” (At 4,32), porque estão longe da face de Deus, no vale do orgulho e da morte.
O idioma de Babel, ainda que único e igual para todos, não lhes serve para um diálogo fraterno, mas simplesmente para dar ordens, dizendo todos e ao mesmo tempo a mesma coisa e da mesma maneira: “Vamos fazer tijolos, e cozamo-los ao fogo” (Gn 11,3). Daí resulta que quem sabe verdadeiramente mandar fazer tijolos, não é ouvido, porque todos pensam saber fazer aquilo que nunca ninguém lhes ensinou fazer, justificando-se que sempre assim foi e assim continuará a ser. E a receita dos tijolos, parecendo não alterar, perde a qualidade e a consistência da autoridade das palavras e gestos que nos conduzem para Deus.
Em Babel, a humanidade, mantendo-se no seu egoísmo, autocondena-se a fazer tijolos, e de muito má qualidade, para construir uma cidade, uma torre, um nome para si mesma. Eis o surgimento de uma nova humanidade, criada por si mesmo e com uma identidade sem Deus nem filiação. Rejeita para si o facto de ter sido criada à imagem e semelhança de Deus e constrói um deus e um ídolo à sua imagem e medida. Em Babel, a Humanidade permanece orgulhosamente só e pateticamente autossuficiente!
A contemplação das ruínas da Torre de Babel desafia-nos a alargar o campo da nossa visão e a estreitar a nossa relação com Deus. Desafia-nos a fazer memória daquela primeira experiência pessoal com Deus… daquele primeiro momento em que nos sentimos chamados por Ele. Desafia-nos a ousar colocar de lado os biscates para assumirmos as verdadeiras obras que definem o nosso carisma como obreiros na construção do Reino de Deus.
Estaremos nós disponíveis a constituirmos verdadeiramente um só corpo e uma só alma em atos e palavras? Estaremos, porventura, predispostos a consagrar plenamente a nossa vida na construção do Reino de Deus? Estaremos nós verdadeiramente ordenados para caminhar para o futuro com um olhar agradecido sobre o passado?
Estaremos nós disponíveis a constituirmos verdadeiramente um só corpo e uma só alma em atos e palavras?
Com Poullart de Places, rezemos:
“Numa palavra, tenho de confessar diante de Deus que não passo de um homem com alguma reputação de estar vivo ainda, mas que na realidade está morto, pelo menos se comparada a presente situação com o meu passado. Valha-me Deus! Quase não passo duma máscara de devoção e duma sombra do que fui. […] Foi assim que muitas pessoas de virtude eminente começaram a escorregar e vieram a acabar mal! Quem, mais do que eu, deverá recear uma queda assim, eu que tenho sido ao longo da vida tão inconstante, pois que ao meu regresso a Deus se seguem desordens profundas?”.
(Antologia Espiritana, I p. 35)