Já correu muita tinta a propósito da última encíclica do Papa Francisco, ‘Fratelli tutti’, mas isso só prova a sua importância e o debate que ela suscitou e ainda provoca. Vou pôr mais umas achas nesta fogueira…
O Papa faz uma reflexão muito actual sobre a parábola do bom samaritano, um texto bíblico que tem suscitado reacções de muitos académicos, políticos, economistas e escritores, incluindo não crentes. O Papa Francisco faz uma distinção entre ser sócio (‘associado para determinados interesses’ TF 102)) e próximo (aquele que, livre de todas as etiquetas e estruturas, foi capaz de interromper a sua viagem, mudar os seus programas, estar disponível para se abrir à surpresa do homem ferido que precisava dele’ (TF 101). Ora, esta é a escolha que, constantemente, somos convidados a fazer.
O capítulo que fala do bom samaritano tem por título ‘um estranho no caminho’. Lembra o Papa: ‘ao amor não interessa se o irmão ferido vem daqui ou dacolá. Com efeito, é o amor que rompe as cadeias que nos isolam e separam, lançando pontes; amor que nos permite construir uma grande família onde todos nos podemos sentir em casa. Amor que sabe de compaixão e dignidade’ (TF 62).
Percorrendo esta emblemática parábola de Jesus, o Papa Francisco recorda que vários passaram ao lado da pessoa batida pelos bandidos…foram-se e não pararam. Não pararam o levita e o sacerdote, homens da lei e do templo. Mas houve um que parou, dando tempo ao ferido, evitando a sua morte eminente. (cf TF 63). E o Papa ousa perguntar-nos: ‘Com quem te identificas?’. A conclusão parece óbvia: ‘habituamo-nos a olhar para o outro lado, passar à margem, ignorar as situações até elas nos caírem directamente em cima’ (TF 64).
Seguir o bom samaritano é fazer um exercício de cidadania responsável, dando vida ao bem comum: ‘com os seus gestos, o bom samaritano fez ver que a existência de cada um de nós está ligada à dos outros: a vida não é tempo que passa, mas tempo de encontro’ (TF 66).
Temos que olhar mais para os outros do que para nós, ultrapassando o egoísmo e o individualismo que caracterizam os tempos que correm: ‘viver indiferentes à dor não é uma opção: não podemos deixar ninguém caído nas margens da vida’ (TF 68).
Hoje são muitos os feridos da história. Muita gente se sente excluída, abandonada ferida nas margens das estradas. Somos constantemente convidados a escolher se queremos ser bons samaritanos ou viajantes indiferentes que passam ao largo.
Simplificando, o Papa explica que há dois tipos de pessoas: ‘aquelas que cuidam do sofrimento e as que passam ao largo; aquelas que se debruçam, sobre o caído e o reconhecem necessitado de ajuda e as que olham distraídas e aceleram o passo’ (TF 70).
A história do bom samaritano está sempre a repetir-se. Jesus ‘confia na melhor parte do espírito humano e, com a parábola, anima-o a aderir ao amor, reintegrar o ferido e construir uma sociedade digna de tal nome’ (TF 71).
Há muitas maneiras de passar ao largo, desde o egoísmo até à indiferença. Mas o texto diz algo que nos incomoda: as pessoas que passam ao largo eram religiosas. Isto prova que ‘o facto de crer em Deus e O adorar não é garantia de viver como agrada a Deus’ (TF 74).
Os que passam ao lado tornam-se aliados dos que assaltam no caminho. Muitas vezes nos sentimos como o ferido, atirados para a margem das estradas da vida. A nossa postura tem de ser de cristãos responsáveis: ‘sejamos parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades feridas. Hoje temos à nossa frente a grande ocasião de expressar o nosso ser irmãos, de ser outros bons samaritanos que tomam sobre si a dor dos fracassos, em vez de fomentar ódios e ressentimentos’ (FT 77).
Fazer o bem implica não esperar agradecimentos pois, como diz o Papa, ‘todos temos uma responsabilidade pelo ferido que é o nosso povo e todos os povos da terra. Cuidemos da fragilidade de cada homem, cada mulher, cada criança, com a mesma atitude solidária e solícita, a mesma atitude de proximidade do bom samaritano’ (TF 79).
Finalmente, há que olhar para o pedido de Jesus: ‘vai e faz o mesmo’ Não nos restam alternativas pois, os cristãos reconhecem o próprio Jesus em cada irmão abandonado ou excluído’ (FT 85).
E fica uma orientação pastoral importante: ‘a catequese e a pregação devem incluir, de forma clara e direta, o sentido social da existência, a dimensão fraterna da espiritualidade, a convicção sobre a dignidade inalienável de cada pessoa e as motivações para amar e acolher a todos’ (FT 86). Apenas percorri o capítulo segundo desta Encíclica do Papa Francisco. Há tanta riqueza nela que lá devo voltar mais vezes. Faz sentido fazer a escolha mais correta: não queremos ser sócios, mas próximos!