O Projeto Ponte 2022 realizou-se na Missão Católica de Caió, na Guiné-Bissau, voltando ao lugar onde começou, há 34 anos, este projeto de voluntariado jovem além-fronteiras. “Sentimo-nos uma gota no meio do oceano” foi a partilha que a Irmã Angelina, irmã espiritana originária de Angola, deixou ao grupo de jovens que passou o mês de agosto naquela missão.
O Projeto Ponte é uma atividade de voluntariado jovem que decorre durante o mês de Agosto, no contexto da lusofonia, com especial incidência nos países africanos de língua oficial portuguesa, e que nasceu no seio dos Missionários do Espírito Santo, através dos Jovens Sem Fronteiras, e que, actualmente, conta com a organização conjunta dos JSF e da ONGD Sol Sem Fronteiras. Conta com a participação de jovens de todo o país pertencentes, essencialmente, a grupos de JSF.
Uma gota no meio do oceano
O Projeto Ponte 2022 realizou-se na Missão Católica de Caió, sedeada em Tubebe, uma das tabancas da Região de Caió, que por sua vez pertence ao Setor de Cacheu, Este lugar de missão está a cargo de 2 irmãs espiritanas, a irmã Fernanda e a irmã Angelina.
Caió é uma região onde predomina a etnia manjaca e é aí que se encontra o Mato Sagrado, local sagrado para a religião tradicional manjaca onde só homens manjacos podem entrar e onde decorrem ritos tradicionais e o fanado (ritual de passagem onde os meninos passam a ser homens). Caió é um quadro pintado em tons terrosos e sobretudo a verde onde vacas, porcos, cabras e galinhas passeiam livremente.
Mas, se viver no meio do mato tem benefícios como a paz, a tranquilidade e o silêncio, tem também desvantagens como o isolamento.
“Sentimo-nos uma gota no meio do oceano” foi a partilha que a Irmã Angelina, irmã espiritana originária de Angola, nos deixou
A precariedade que se faz sentir nos postos médicos, nas escolas, nos mercados deve-se muito a este isolamento que impossibilita o desenvolvimento da região. Os próprios deputados que representam a região de Caió não residem ali, aliás, alguns nem residem na Guiné, por isso não estão cientes dos problemas que se fazem sentir e acabam por não lutar pelas causas certas.
Guiné, terra esquecida
A Guiné é um país onde não faltam recursos, há água, terrenos férteis e vontade de aprender e melhorar, mas não desenvolvimento. Porquê? Porque há um problema estrutural gravíssimo e uma política baseada em golpes de estado.
Camões tem um poema com um verso muito conhecido “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, contudo na política da Guiné-Bissau, mudam-se os tempos, mudam-se os presidentes, mas as vontades continuam as mesmas. A Guiné é a terra esquecida pelos próprios governantes que do alto das suas mansões, muitas vezes fora de solo guineense, não conseguem encarar o povo e dar respostas às inúmeras necessidades vividas. Isto é visível na educação, na saúde e até nas próprias infraestruturas. Em Bissau o único edifício que se encontra bem preservado (fora um ou outro hotel) é o palácio presidencial, isto é uma boa analogia para o estado da política e do país.
Dar e perder
A saúde é uma das áreas com mais fragilidades na Guiné. Só no curto tempo que passámos em Caió morreu um homem, por ter sido mordido por uma cobra e não haver recursos na tabanca para o salvar, e uma criança de oito anos que caiu de uma bicicleta e teve de se deslocar até ao Senegal para ser tratada e infelizmente não chegou a tempo.
Como não há possibilidade de haver centros de saúde em todas as tabancas surgiram os Agentes Sanitários, pessoas que voluntariamente prestam serviços de saúde à comunidade. Contudo, estas pessoas não recebem qualquer tipo de formação, material ou apoio financeiro. Alguns agentes sanitários chegaram até a partilhar que tiram do próprio dinheiro para alugar motas para visitar doentes e levar pessoas ao hospital.
Nos próprios hospitais e nos centros de saúde há falta de material por falta de fornecimento por parte do Estado.
Agentes sanitários, médicos enfermeiros têm muita vontade de prestar serviços de saúde de qualidade, mas sem as verbas do Estado vêm-se de mãos atadas.
Educação, o pilar de uma sociedade
Um dos trabalhos desenvolvidos pelo grupo ponte foi dar aulas de português a alunos de faixas etárias e níveis de desenvolvimento completamente distintos. Havia crianças que não sabiam ler nem escrever, alunos com necessidades educativas especiais e até pais de família que pretendiam melhorar o seu português.
Durante o mês fomos percebendo que a educação na Guiné necessita de reformas urgentes. As aulas devem ser lecionadas em português, contudo o nível de português dos próprios professores é muito limitado. É necessário pagar para frequentar a escola pública, mas devido à falta de pagamento do Estado aos professores os alunos passam semanas inteiras sem aulas. Já as escolas privadas praticam preços que não são acessíveis a todos, havendo muitos alunos que são expulsos da escola por não terem dinheiro para continuar a pagar as propinas. Uma das nossas alunas partilhava que este ano não iria estudar pois não tinha meios para frequentar uma escola privada e que se recusava a pagar a escola pública para não ter aulas.
A educação é um direito que é negado diariamente a estas crianças e as consequências disso são a involução da sociedade guineense e o agravamento dos problemas estruturais existentes.
Um caminho cheio de percalços
As viagens na Guiné são sempre uma aventura e dão aso a histórias caricatas, e por vezes até aflitivas, que ficam para sempre gravadas na memória e na coluna de cada um que se atreve a entrar nas clássicas carrinhas de caixa aberta.
O alcatrão desaparece assim que se chega às periferias de Bissau e dá lugar a infindáveis estradas de terra, repletas de lama, buracos e lagoas que dificultam a deslocação. A dificuldade nos acessos vem acentuar ainda mais o isolamento que se faz sentir nas regiões do interior da Guiné e impossibilitar o acesso a materiais que só se encontram nas grandes cidades.
Partilho convosco duas situações que ilustram bem as dificuldades vividas diariamente pelo povo guineense e por todos os missionários que têm de se pôr a caminho nestas estradas.
Na segunda semana do projeto deslocámo-nos até Calequisse para conhecermos a casa das irmãs espiritanas em Betenta e a casa dos padres espiritanos de Bajob, uma viagem de cerca de quatro horas. Na volta, quando ainda faltavam 2 horas para chegarmos a Caió, a roda direita da frente começou a fazer um barulho que ia aumentando progressivamente. Era o calço. Por sorte tínhamos saído com dois carros nesse dia.
Continuámos viagem com aquele barulho ensurdecedor e com fumo a sair da roda, chegámos a Caió sãos e salvos, mas o carro teve de ficar no mecânico. Uma curiosidade sobre mecânica na Guiné, mais vale comprar peças europeias usadas do que peças senegalesas novas.
Passámos o resto mês a usar uma carrinha de caixa aberta onde tinham de caber sempre mais de 12 pessoas, carrinha essa cujos travões também não estavam nas melhores condições.
Outra das peripécias que tivemos na estrada foi ficarmos presos numa lagoa debaixo da chuva torrencial, só pode conduzir na Guiné quem tenha nervos de aço.
Por fim passo-vos a última dica de mecânica que aprendi na Guiné. Se os vossos calços estão a precisar de ser trocados e até já deitam fumo, não os troquem, tirem os travões e fica tudo bem. Dica esta que aprendi na nossa viagem de Caió para Bissau com o condutor da carrinha que nos levava.
Sentimento para privilegiados
O amor é muito bonito, mas não é para todos. Na região de Caió a poligamia está a entrar em desuso, contudo, a geração dos trinta, quarenta anos, ainda propaga essa prática. As combossas (co-esposas, várias esposas do mesmo marido) na sua grande maioria vivem na mesma casa e convivem diariamente. Há alguns casos em que é a primeira esposa que pede ao marido para arranjar uma segunda esposa de forma a ter alguém com quem dividir o trabalho. Tradicionalmente a segunda esposa é responsável pelo marido, trata da sua roupa e das suas refeições.
Esta realidade ficou muito clara para nós através dos registos, um dos trabalhos que realizámos ao longo do mês. Esse trabalho consistia num levantamento de dados do agregado familiar que incluía perguntas como a data de nascimento, a ocupação profissional, o nível de ensino que concluiu e a documentação que possui.
Foi também através dos registos que constatámos que a realidade de uma família portuguesa e guineense tende a ser muito diferente. Muitas mães não sabiam as datas de nascimento dos filhos e algumas pessoas não tinham bem noção de quantas pessoas viviam em sua casa.
Na Guiné as crianças tomam conta umas das outras e não há grandes demonstrações de afeto, os pais não dão aquele miminho bom que estamos habituados nas nossas famílias, o que se notou na convivência que com elas tivemos.
Mesmo assim, o que me marcou mais no que toca ao amor foi a escolha da pessoa com quem vamos passar o resto da vida.
Um dia numa viagem na carrinha de caixa aberta falou-se de casamentos. Uma das senhoras que nos acompanhava disse prontamente que cuidava do seu marido porque tinham casado, mas que o seu verdadeiro amor não era ele. Tinha casado porque o pai tinha arranjado aquele casamento e que tinha de aceitar porque “as coisas são assim”. Outra senhora, um pouco mais jovem, proveniente de Bissau partilhou a experiência dela, que tinha casado por amor e que não aceitaria que fosse de outra forma. O amor é bonito, mas infelizmente não é um sentimento para todos. A década, o lugar e família em que nasceste ainda condicionam coisas tão simples como os sentimentos.
Não és dona do tempo
Foi a primeira lição que aprendi na Guiné. Em Portugal passamos o tempo de um lado para o outro com a agenda planeada ao segundo. Cheguei à Guiné com o mesmo espírito e rapidamente percebi que as coisas não iam funcionar se eu não mudasse o “chip”.
Aterrámos em Bissau no dia quatro de agosto e era suposto partirmos para Caió no dia seguinte. Todavia, ao acordarmos no dia cinco percebemos que chovia torrencialmente e o tempo assim se manteve durante todo o dia. Reclamámos, dissemos que preferíamos ir à chuva a ficar mais um dia em Bissau, mas de nada serviu. Já no dia seis, ao fazermos a viagem, percebemos que realmente tinha sido mais prudente permanecermos um dia a mais em Bissau. Agora que penso nisso a chuva torrencial deve ter sido um sinal de Deus para não irmos para Caió pois nesse dia apareceu uma cobra no terreno das irmãs. Lá nos safámos desta.
Na Guiné dia de chuva é dia “perdido”. Ninguém sai de casa e as atividades marcadas ficam automaticamente sem efeito. No início a chuva enervava-me. Mas por que raio é que tinha de estar sempre a chover? Mas ao longo do mês aprendi a gostar da chuva, percebi o valor que tem e como é importante para os campos de arroz.
Dei por mim a pedir chuva, vejam lá, para aguentar o calor abrasador que se fazia sentir enquanto trabalhávamos.
Ah e a trovoada, que nos acordava a meio da noite e que nos fazia sentir num cenário apocalíptico. Nunca tinha visto nem ouvido nada assim. Os raios rompiam a escuridão da noite e iluminavam toda a área em redor. Era um espetáculo de luzes impressionante e que dificilmente se pode experienciar na Europa, foi das situações mais marcantes que vivi na Guiné.
Viver intensamente
O projeto ponte na Guiné-Bissau há de ser das experiências mais intensas que um jovem pode ter. Tudo é intenso.
Os cheiros são algo tão difícil de descrever, mas foram outra das coisas que mais me marcou. O cheiro tão característico da Praça, uma mistura de peixe a secar, dejetos de morcego e pelo de animais, que causava náuseas até aos fortes de estômago, o cheiro do caju a ser queimado, o cheiro a Caldo de Chabéu (prato tradicional feito com a fruta da palmeira) ou o cheiro da água parada eram parte do nosso dia a dia e faziam-se sentir intensamente.
Também as emoções eram intensas.
Quando havia tempestades tínhamos mesmo medo. Quando dávamos aulas estávamos realmente felizes e devotos àquela tarefa.
Nós, do projeto ponte, tínhamos uma vontade muito grande de dar algo à comunidade e a comunidade estava de braços abertos, pronta para nos receber, a nós e às iniciativas que queríamos pôr em prática.
A própria eucaristia era vivida intensamente, repleta de gratidão por poderem celebrar Cristo todos juntos. As vozes de timbres tão característicos, o som do djambé e as palmas que ressoavam em ritmos tão diferentes mas que se complementavam tão harmoniosamente demarcavam o tom da celebração que era sempre vivida em grande alegria.
E se a chegada foi intensa a partida não foi diferente. As crianças que nos tinham acompanhado ao longo do mês juntaram-se para cantarem uma canção na nossa despedida. Foi um momento cheio de sorrisos e abraços, mas sobretudo de muitas lágrimas. “Os mesmos nunca podemos voltar”. Esta frase é um dos versos do hino da Ponte 2014 que também se realizou na Guiné-Bissau e diz o essencial: que é impossível voltar igual da Guiné. Estas vivências intensas não deixam ninguém indiferente.