3º Domingo do Tempo pascal
Habitualmente, as reflexões sobre esta aparição de Jesus ressuscitado não se detêm na afirmação – porque considerada um pormenor – “os seus olhos estavam impedidos de o reconhecer”, até por que se trata de algo muito misterioso: como é possível que, três dias apenas fossem suficientes para esquecer o seu timbre de voz, para não o reconhecer nos seus gestos típicos e para não reparar nas suas chagas?
O evangelista Marcos pode dar-nos uma ajuda, pois, ao referir-se a esta aparição afirma apenas que Jesus apareceu a dois deles, enquanto estavam a caminho do campo, mas “com outra aparência” (Mc.16,12). Aliás, já Maria Madalena o tinha confundido com o jardineiro (Jo.20,15). Parece, pois, poder afirmar-se que Jesus nem sempre apareceu com as ‘marcas’ caraterísticas: “vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo! Tocai-me e vede”, como acontece na aparição após o regresso apressado destes dois discípulos a Jerusalém (Lc.24,39).
Poderá daqui deduzir-se que, tal como pela incarnação Ele tinha assumido toda a natureza humana, agora, pela sua ressurreição, como que tenha ‘reincarnado’ em todo o ser humano, não num panteísmo de que tudo é Deus, mas de que Deus (= Cristo) está em tudo e em todos? Não será isso que S. Paulo nos quer dizer, ao afirmar que “já não há grego, nem judeu, circunciso ou incircunciso, estrangeiro ou bárbaro, escravo ou livre, mas apenas Cristo, que é tudo em todos” (Col.3,11)? Ou que dizer da afirmação do próprio Cristo “todas as vezes que fizestes isto a um dos menores dos meus irmãos, foi a Mim que o fizestes” (Mt. 25,40)?
Muito provavelmente, como estes discípulos a caminho de Emaús, também nós dizemos: “mas a Ele, ninguém O viu”! Porquê? Porque não O procuramos no lugar certo e queremos que Ele se sujeite às nossas exigências – o que até já fez uma vez, ao aceder à teimosia de Tomé.
Mais uma razão para, agora, sabermos onde O poderemos encontrar! É verdade que foi na ‘fração do pão’, isto é, na Eucaristia que estes dois discípulos finalmente O reconheceram. Mas até esse momento foi precedido de um gesto deles, pelo qual, apesar do cansaço da viagem e de a casa não estar preparada, forçaram Jesus a entrar e ficar com eles. Na verdade, se O tivessem deixado continuar viagem, depois de lhe agradecerem a companhia e as palavras que lhes dirigiu, não O teriam reconhecido!
E mesmo a designação de ‘fração do pão’ aponta muito para além do gesto ritual e sacramental (na igreja), para nos indicar que essa tem de ser a nossa atitude permanente, a nossa ‘marca’ de cristãos: viver em atitude de partilha, fazendo-nos ‘comPANheiros’ de quantos nos nossos dias trilham estradas de Emaús, isto é, de desencanto, de desalento, de passado e não de futuro. De facto, hoje não são apenas duas as pessoas que percorrem os caminhos de Emaús, mas são verdadeiras multidões os que calcorreiam os caminhos da vida vergados ao peso da tristeza, do desânimo, da solidão, da falta de sentido para a vida.
Todos sabemos que a maior solidão não consiste tanto no isolamento físico como na redução do ser humano a mónadas, hermeticamente fechadas sobre si mesmas, de tal modo que, mesmo atropelando-se continuamente umas às outras, mais se fecham ainda.