“Consagrados ao Espírito Santo sob a protecção do Coração Imaculado de Maria, celebramos dum modo especial as festas do Pentecostes e do Coração Imaculado de Maria.”
Regra de Vida Espiritana, 99.1
A Sociedade do sagrado Coração de Maria, nasceu à sombra da Arquiconfraria de Nossa Senhora das Vitórias, de Paris, fundada pelo P. Desgenettes, grande amigo de Libermann. A 9 de Fevereiro de 1844, quatro anos após a fundação do primeiro noviciado, em La Neuville, Libermann escreve a Desgenettes, a seu pedido, uma carta em que lhe conta os primeiros passos desta Congregação e o papel que o Coração de Maria e a Arquiconfraria de Nossa Senhora das Vitórias tiveram nesta fundação. É um dos testemunhos mais impressionantes saídos da pena de Libermann.
La Neuville, Fevereiro de 1884
Querido amigo e venerável Padre
Logo que o sr. B… me fez conhecer que Você estava interessado em um informações sobre a Obra dos Negros, lancei mãos à obra, mas vi-me obrigado a interrompê-la várias vezes, pelo que não o pude fazer tão depressa como desejava.
Vou dizer-lhe como as coisas se passaram com toda a simplicidade e confiança, como um filho para com seu pai.
Não tenho dúvidas que a nossa pequenina Obra dos Negros deve à poderosa proteção do santíssimo Coração de Maria a sua existência e todos os progressos que ela fez desde o pouco tempo que foi fundada. Todos os piedosos confrades, que comigo a começaram e a continuaram, disso estão intimamente convencidos e os nossos corações estão profundamente reconhecidos para com a gloriosa Rainha do Céu.
Desde os seus primeiros anos, que a Arquiconfraria da Senhora das Vitórias intercedia por esta pequena obra, junto do Imaculado Coração desta nossa boa Mãe. Os principais protagonistas que a começariam não estavam ainda decididos; os obstáculos que se interpunham pareciam insuperáveis, mas as fervorosas orações da santa liga do Imaculado Coração de Maria conseguiram o que parecia impossível; de facto, desde a origem deste difícil empreendimento, toda a nossa confiança repousava nas bondades do Coração da nossa boa e santa Mãe.
Apesar das dificuldades que humanamente pareciam superar em muito a nossa fraqueza, tivemos sempre uma grande confiança que as coisas acabariam bem. Por um lado, eu sentia uma profunda tristeza e nem sequer ousava falar a alguém do nosso projeto, pois ele me parecia uma loucura, à luz ordinária da razão e, como tal, deveria parecer a toda a pessoa de juízo; por outro lado, sentia em mim um impulso forte e um sentimento de confiança muito grande no Santíssimo Coração de Maria. As poucas pessoas a quem falei do nosso projeto me repreenderam e me procuraram dissuadir desse propósito; e, apesar disso, eu não podia impedir-me de ir para a frente, tanto este sentimento de confiança me impedia de escutar o que me diziam para me dissuadir.
Mas, apesar deste impulso interior, eu queria conhecer a divina vontade sobre o fundo desta obra e empregar para isso os meios mais adequados para me assegurar, segundo a ordem de Deus na sua Igreja. Foi por isso que, no princípio do ano de 1840, me pus a caminho de Roma, onde Nosso Senhor pôs as suas luzes para o governo de toda a Igreja. Apresentei-me sem certificado, sem cartas de recomendação e não procurei nenhuma proteção para fazer valer as minhas intenções nem para solicitar a respetiva aprovação. Eu vinha para conhecer a vontade divina e acima de tudo, tinha receio de fazer valer a minha.
Muitas vezes, os meus amigos me repreendiam a inação em que eu permanecia. Mas eu tinha ainda outra razão para agir dessa maneira. O meu projeto parecia contrariar de tal maneira as regras ordinárias da prudência, que eu estava de antemão convencido, que todos aqueles a quem eu pedisse qualquer espécie de apoio mo recusariam. Eu tinha já dificuldades que chegassem, não queria arranjar outras ainda. Não restava, portanto, senão a confiança em Maria para me apoiar. Passei dois meses sem tomar qualquer iniciativa, procurando sobretudo inteirar-me do processo a seguir para introduzir o projeto; o que não era coisa fácil, pois as pessoas a quem me dirigi, acolheram-me mal, julgando a minha ideia uma quimera. A falta de recomendações também contribuiu um pouco para isso.
Ao fim de dois meses, fiz um memorial no qual tracei as linhas principais do nosso projeto e enviei-o ao Mons. Cadolini, então secretário da Propaganda, e atualmente cardeal. Depois retirei-me para a minha solidão e esperei que Deus se manifestasse. Eu não tinha ordens sagradas; o meu estado de saúde parecia impedir-me para sempre de as receber e eu apresentava-me como devendo ficar à frente de uma obra eminentemente sacerdotal! Assim, como poderia a Propaganda debruçar-se sobre o meu projeto e ser-lhe favorável? Deste modo, eu não tinha nenhuma esperança humana de ter uma resposta ao meu memorial, sobretudo depois de terem passado dois ou três meses sem ter ouvido mais nada a seu respeito. De resto, eu não tomava qualquer espécie de iniciativa para fazer avançar as coisas; se a obra entrasse nos desígnios de Deus, ela falaria por si mesma.
O Coração de Maria dá o nome à Congregação
A minha confiança estava sobretudo no Santíssimo Coração de Maria e nas orações numerosas e fervorosas da Arquiconfraria. Daí, a perfeita tranquilidade da minha alma e no meu coração uma inquebrantável confiança que Deus aprovaria a obra e a faria vingar, apesar das aparências contrárias. Esta confiança era tal que, no momento em que tudo parecia perdido, lancei-me seriamente a traçar o plano da nossa obra, os passos a dar na sua execução, o espírito em que deveríamos viver. Neste trabalho aconteceu-me uma coisa singular, em que a intervenção do santíssimo Coração da nossa boa Mãe foi manifesta e que me causa ainda agora uma grande consolação
Só Tisserant era de opinião que devíamos consagrar a nossa obra ao Santíssimo Coração de Maria. Levavasseur e eu não pensávamos que uma obra apostólica devesse ser consagrada ao Coração Imaculado de Maria, apesar de termos toda a confiança neste santo Coração.
Eu pensava que a Sociedade deveria encontrar na sua consagração todas as suas devoções e um modelo perfeito das virtudes fundamentais do apostolado; e não sei porquê nunca me veio à ideia que pudéssemos encontrar tudo isso no Santíssimo e Imaculado Coração de Maria.
A minha ideia para esta dedicação era outra. Eu estava com muita dificuldade em traçar o plano em questão, mas nenhuma ideia me vinha à cabeça; eu estava na mais completa obscuridade. Depois fiz a visita às sete igrejas e visitei ainda outras igrejas dedicadas à Santíssima Virgem e então, sem saber porquê, decidi-me consagrar a obra ao Santíssimo Coração de Maria. Regressei a casa e lancei-me mais uma vez à obra, para recomeçar o plano em questão.
Ora aconteceu que então tudo me pareceu claro, que dum só golpe vi todo o conjunto da obra e todos os desenvolvimentos com todos os pormenores. No decorrer do trabalho e à medida que me detinha na explanação dos pormenores, por vezes surgiam-me dificuldades e eu ficava sem ver claro; então ia fazer uma visita a uma das igrejas da minha devoção (Santa Maria Maior, Santa Maria In Trasntevere, a Madona del parto na igreja de Santo Agostinho e a Madona della Pace) e tinha a certeza que no regresso não tinha senão que retomar a pena; as dificuldades desvaneciam-se e o que era incerto tornava-se claro; nunca isto falhou.
O Coração de Maria e a aprovação da Congregação
Durante este tempo, o Cardeal Prefeito da Propaganda escreveu para França para saber informações a meu respeito, ao mesmo tempo que me chegavam alguns certificados que padres piedosos me tinham aconselhado a apresentar. O meu memorial foi examinado pela Congregação da Propaganda e, ao fim de três meses, o cardeal Fransoni, sabendo que eu estava em Roma, escreveu-me uma carta a animar-me. Em substância dizia-me que a Sagrada Congregação, reservando-se embora a aprovação oficial do meu projeto para mais tarde, o tinha achado, logo desde a primeira leitura, bom e útil para a glória de Deus e a salvação das almas; ele louvava o meu zelo e exortava-se a vencer as dificuldades e a perseverar nas minhas intenções. Sua Eminência acrescentava que rezava a deus Todo Poderoso que me desse saúde suficiente para eu poder ser promovido ao sacerdócio e dedicar-me inteiramente a esta obra.
A oração de um tão grande santo foi ouvida; a minha saúde restabeleceu-se e, no ano seguinte, fui ordenado padre.
No enanto, apesar de a minha saúde ter melhorado, havia grandes dificuldades para a minha ordenação e eu tinha uma extrema repugnância em eu próprio fazer démarches nesse sentido. Abstive-me, portanto, disso, mas Maria fê-lo por mim. Neste entrementes aconteceu que eu fui em peregrinação a Nossa Senhora do Loreto para lhe falar das incertezas da minha obra. Ora aconteceu que precisamente durante este tempo, falou-se em meu favor a um dos nossos mais dignos bispos de França e este insigne prelado ofereceu-se para me ordenar. Quando regressei a Roma, encontrei uma carta que me dava conta desta notícia. Voltei para França e foi, efetivamente, das mãos deste piedoso bispo que recebi as primeiras ordens. Depois o bispo de Amiens me ordenou padre.
O Coração de Maria e as primeiras dificuldades
Começamos a nossa obra sob a proteção de Sua Reverendíssima que nos cumulou de tantos benefícios. Foi então que mais uma vez a proteção do Imaculado Coração de Maria se fez sentir. Éramos apenas três que nos tínhamos reunido em La Neuville, perto de Amiens, e aconteceu que pessoas muito piedosas, muito bem-pensantes, muito zelosas pela glória de Deus, procuraram baralhar tudo, lançando zizânia no nosso meio, com palavras ditas com boa intenção a um dos principais fundadores da Obra. Estas palavras, repetidas muitas vezes, deixaram uma tal impressão na alma do meu piedoso confrade, que, durante os primeiros dois meses, ele nem sequer duvidava da tentação. Eu estava profundamente preocupado, sem poder remediar o caso.
Três dias antes da festa da Apresentação, tive a ideia de recomendar o caso ao Santíssimo Coração de Maria; passei este tempo em oração e, chegado o dia da festa, operou-se como que uma revolução no coração do confrade. Veio ter comigo, abriu-me a sua alma com toda a confiança e disse que a Santíssima Virgem lhe tinha obtido uma mudança completa das suas disposições a meu respeito. Fiel à sua resolução de combater estas tentações com todas as suas forças, sempre que sentia este sentimento de desunião, recorria ao Imaculado Coração de Maria e era logo ouvido.
Estes combates duraram até ao princípio de fevereiro. Pelos fins de janeiro, ele foi a Paris para fazer a consagração ao Santíssimo Coração de Maria, junto do altar de Nossa Senhora das Vitórias. Ele queria obter a cura desta perniciosa tentação, que o opunha contra mim. Passou toda a noite que precedia a festa da Purificação diante do altar do Imaculado Coração de Maria e ficou completamente curado. Escreveu-me a dizer que a sua atitude para comigo tinha mudado totalmente; e desde então reina entre nós uma perfeita união.
O Coração de Maria e a primeira missão dos Espiritanos
Pouco mais ou menos nesta mesma época, obtivemos uma outra graça do Coração Imaculado de Maria: como é sabido tinha sido a missão do Haiti, juntamente com Bourbon, que nos tínhamos proposto ao princípio, como objetivo da nossa associação.
Como tinha sido Maria que nos reuniu, esta boa Mãe quis-nos fazer sentir que era do seu Coração Imaculado que nós poderíamos obter tudo e foi por isso que as nossas duas grandes missões, a do Haiti e a da Guiné, nos foram confiadas por Nossa Senhora das Vitórias. Você conhece esta história melhor que eu, pois que foi de si que a Santa Mãe de Deus se serviu.
Aconteceu, porém, que a situação do Haiti se complicou e nós vivemos um momento muito crítico. Tínhamos então cinco missionários prontos para partir e não tínhamos missão para lhes dar. Foi então que eu me dirigi a Paris para recomendar a Obra ao Santíssimo Coração de Maria e ao mesmo tempo ver em que ponto estavam as coisas. Encontrei tudo em tal estado que não havia nenhuma esperança de encontrar uma missão antes de dezoito meses ou dois anos. Ainda me lembro de ter descido consigo os degraus de Nossa Senhora das Vitórias e de lhe ter dito:
– Padre, estamos com um problema
– Porquê? Me perguntou você.
– Falta-nos terra.
– Como assim? Não têm dinheiro?
– Não, não é isso; a Santíssima Virgem nunca nos faltou com ele; mas não sabemos para onde ir, pois todas as portas se fecham.
O senhor procurou consolar-me, mas eu não tinha necessidade disso, pois apesar do desalento em que me encontrava, com cinco missionários impacientes por estarem fechados tanto tempo e a quem estes atrasos infinitos poderiam fazer desanimar, eu estava em paz. É verdade que a minha única segurança era que o meu espírito confiava sempre no Coração de Maria; por isso no meu interior conservava uma grande calma e uma inteira confiança. Lembro-me até de lhe ter dito, no canto da sua lareira, que estava certo de que em breve teríamos uma missão, que eu estava demasiado calmo e que não podia explicar esta tranquilidade, senão porque o Coração de Maria nos preparava uma missão.
Deixei Paris esse mesmo dia. No dia seguinte, Monsenhor Barron, vigário apostólico da Guiné, veio também ele rezar a Maria, no altar do Coração Imaculado de Maria, em Nossa Senhora das Vitórias. Foi então que ele lhe falou do seu vasto vicariato e da falta de padres que ele tinha. Coisa estranha, que eu não sei explicar naturalmente, você não se lembrou de falar do nosso problema. E na véspera você tinha ficado tão preocupado com a nossa situação! Uma segunda oportunidade de nos ajudar, a nós, filhos do Coração de Maria, se apresentou e você tornou-se a esquecer. Eu só vejo nisto uma explicação: Maria queria mostrar-nos que tudo nos vem do seu Coração Imaculado. De facto, depois da sua conversa com o piedoso Vigário Apostólico da Guiné e depois de o ter deixado com o seu problema, você foi para o altar do Imaculado Coração ; e foi aí que você teve como que uma inspiração súbita e interior, que lhe dizia que essa missão seria para nós; depois você falou disso a Mons. Barron e no dia seguinte à minha chegada a Amiens foi preciso voltar a Paris, onde eu enviei o P. Schwindenhammer para regular este assunto, que Maria tinha já começado para nós.
Sem Maria, nós não existiríamos
Aqui ficam algumas graças especiais, com que o admirável Coração de Maria nos cumulou. Mas não seria necessário lembrar estes casos especiais para reconhecer as bondades do Coração de Maria para connosco; basta lembrar com que recursos nós começamos e como em tão pouco tempo chegamos a um tal ponto que se diria que existimos já há dez anos. Tínhamos tudo contra nós e nada em nosso favor.
Para começar não éramos mais que três, sem nenhuns recursos, e, ao fim de dois anos, tínhamos já uma casa e um jardim para o nosso noviciado e, além disso, com que sustentar uma quinzena de missionários. Neste momento, temos doze missionários, já colocados em diversas missões: Maurícia, Bourbon, Haiti e Guiné; treze estão prontos para partir, além de quatro irmãos; na casa do noviciado, sete seminaristas e três irmãos, além do miúdo negro, cuja história o senhor conhece e que nos foi enviado por Maria, pois que foi durante uma peregrinação a Nossa Senhora do Livramento que um dos nossos o descobriu.
Um tão significativo número de outros que estão para vir está já anunciado para o futuro. E a verdade é que não temos feito nada para chamar as pessoas. É uma regra que eu me pus na condução das coisas: a de esperar em tudo os momentos da Providência. Estou certo que, com a ajuda das orações do Imaculado Coração de Maria, tudo correrá bem.
(Carta 317. LS. IV)