A Quaresma chega, cada ano, com uma proposta renovada de mais conversão, melhor oração e muita partilha solidária, assente num jejum praticado com uma comprometida vontade de melhorar a qualidade de muitas vidas.
O Brasil, para mim, continua a ser a grande referência mundial na vivência deste tempo forte. Tenho repetido muitas vezes esta convicção, pois a Igreja neste enorme país lusófono consegue unir-se, ano após ano, e programar a Campanha da Fraternidade. Sempre há um tema mobilizador, escolhido entre as muitas urgências a que é necessário responder neste país verde-amarelo.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) não tem dúvidas a este respeito: ‘a Campanha da Fraternidade tornou-se expressão de comunhão, conversão e partilha. Comunhão na busca de construir uma verdadeira fraternidade; conversão na tentativa de deixar-se transformar pela vida fecundada pelo Evangelho; partilha como visibilização do Reino de Deus que recorda a ação da fé, o esforço do amor, a constância na esperança em Cristo Jesus (Cf. 1Ts 1,3)’.
2023 vai atacar o drama da fome. Daí o lema: ‘Dai-lhes vós mesmos de comer!’, que não é uma frase bombástica inventada por qualquer empresa de publicitários criativos, mas é a ordem que Jesus dá aos discípulos, depois de um longo dia de pregação às multidões e antes de fazer o milagre da multiplicação dos pães. O Cartaz da Campanha apresenta, com clareza e frontalidade, a justificação da escolha do tema: “Vemos no cartaz o mapa do Brasil, país considerado o celeiro do mundo, mas que carrega uma grande contradição: a fome é real e atinge hoje cerca de 33,1 milhões de Brasileiros. Em destaque contemplamos as mãos que repartem e dão vida à solidariedade guiada pela fé. O arroz e o feijão, alimento do povo, passam pelas mãos de homens e mulheres que sabem que a solução do problema da miséria e da fome não está somente nos recursos financeiros, mas na vida fraterna. Ninguém deve sofrer com a fome quando realmente vivemos como irmãos e irmãs. Eis o convite: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16)”.
Do Brasil demos um salto até Roma. O Papa Francisco (como todos os Papas desde há muito) publicou a Mensagem para a Quaresma. Deu-lhe o título: ‘Ascese quaresmal, itinerário sinodal’. Inspira-se noutro grande momento da vida de Jesus: a Transfiguração. Lembra que Jesus nos toma sempre consigo e nos conduz a um lugar à parte. Defende o Papa: ‘é preciso deixar-se conduzir por Ele à parte e ao alto, rompendo com a mediocridade e as vaidades. É preciso pôr-se a caminho, um caminho em subida, que requer esforço, sacrifício e concentração, como uma excursão na montanha’.
O Papa cruza a quaresma com a sinodalidade, uma vez que ‘percorremos juntos o caminho, discípulos do único Mestre’. Tal como a subida ao monte Tabor, percorrer um caminho sinodal é cansativo e pode levar ao desânimo, mas ‘aquilo que nos espera no final é algo, sem dúvida, maravilhoso e surpreendente, que nos ajudará a compreender melhor a vontade de Deus e a nossa missão ao serviço do Reino’.
Assim, a quaresma como o sínodo têm por objetivo a transfiguração pessoal e eclesial. Queremos mudar o mundo, mudando-nos a nós próprios e às comunidades. Queremos preparar seriamente a Páscoa. Por isso, façamos o que o Papa sugere: ‘Desçamos à planície e que a graça experimentada nos sustente para sermos artesãos de sinodalidade na vida ordinária das nossas comunidades’.
Voltemos ao Brasil e ao tema da Campanha da Fraternidade. A fome é uma realidade e até os números mais simpáticos das Nações Unidas falam desse drama mundial. Recordemos que o Papa Francisco, na Fratelli Tutti (2020), dizia que o mundo ‘ainda estava longe de uma globalização dos direitos humanos’ e um dos objetivos fundamentais da humanidade é ‘eliminar a fome’. Tal tarefa está dificultada pelo facto de se ‘descartarem toneladas de alimentos, um verdadeiro escândalo!’. Gritava o Papa: ‘a fome é criminosa, a alimentação é um direito inalienável’ (FT 189). E, quase no fim, fazia uma proposta ousada: ‘com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um fundo mundial para acabar de vez com a fome!’ (FT261).
Boa Quaresma, rumo à Páscoa!