Na favela da Vila Prudente, ao longo destes cinco anos, já tinha visto um pouco de tudo. Porém, foi a primeira vez (espero que seja a última) que presenciei dois corpos velados, cercados de um mar de gente na nossa Igreja, no coração da favela durante a Quaresma, em plena Campanha da Fraternidade, cujo tema é Fraternidade e Superação da Violência. Pessoalmente, fiquei sem chão e vocês entenderão o porquê ao longo do texto.
No dia 09 de março, sexta-feira, a favela sofreu uma investida da ROTA, desrespeitando os que ali vivem e trabalham, invadindo casas e projetos culturais, xingando e agredindo algumas pessoas, entre elas muitas mães que tentavam proteger seus filhos. Os policiais passaram semeando terror pelas vielas e becos como de costume.
O que “parecia simplesmente rotina” tornou-se pesadelo no Sábado de madrugada. Pois foi somente nesse dia que a favela percebeu que dois jovens haviam sido mortos pela ROTA na noite anterior, por volta das 20h. As festas e bailes tão rotineiros foram interrompidas pelo luto, dando paulatinamente espaço a um clima de revolta, dor e perplexidade. E os becos e vielas agora eram tomados por exclamações: “mataram eles mesmo?” “Nossa!” “Inacreditável!”
O ponto culminante desta estória triste – mas banal para muitos admiradores da ROTA e da PM – foi no domingo, dia 11. Ao longo do dia, muita gente passou em torno dos dois caixões, um ao lado do outro, na Igreja: crianças, adolescentes, mulheres, adultos, homens. Eu me foquei, sobretudo, nas reações dos jovens.
Não houve nenhum deles que não desabasse em prantos, me parece que na cabeça deles rodava um filme que dizia: “hoje não fui eu, mas amanhã poderá ser” Agora, acredito concretamente que a nossa vida é tratada com menor valor que a dos moradores dos Jardins. Pior que esse mesmo filme também passou pela minha cabeça: Mais uma dona [Manuela – minha mãe -] de luto.
Cada lugar uma lei, eu tô ligado. No extremo Sul da Zona Sul tá tudo / Errado. Aqui vale muito pouco a sua vida. A nossa lei é falha, violenta e / suicida. Se diz que, me diz que, não se revela: parágrafo primeiro na lei da / Favela. Legal… Assustador é quando se descobre que tudo dá em nada e / Que só morre o pobre.
Os mesmos jovens carregaram os caixões para o sepultamento e no cortejo uma vez mais, era possível ver crianças, adolescentes, adultos, crentes, católicos, um monte de gente irmanadas por um único sentimento: “mataram os caras, mas Deus ainda ama os que vêm do gueto.” Houve aplausos e rojões. Pararam por um instante a Av. Anhaia Melo. Uma carreata enorme seguiu-se para o cemitério.
Fui testemunha deste episódio como também fui de vários outros abusos policiais na favela. Mas esse caso me fez entender a música Da ponte pra cá dos Racionais Mc, em que diz: “o mundo é diferente da ponte para cá.”
A favela não negou esses jovens e estava sepultando, antes de mais, dois palmeirenses que nasceram e cresceram naqueles becos, que tinham seus amigos e familiares lá. Estavam enterrando dois favelados, e não julgavam o caminho e a vida que tinham trilhado. Porém, na minha rua, do outro lado da ponte, dois caras me perguntaram: “já enterraram aqueles dois vagabundos”? Eu sabia que era uma afronta, mas a minha indignação foi tremenda. Foi esse o momento exato que entendi os Racionais MCs.
Eles não sentem o risco de quem está da ponte pra cá. Não entendem que quem vive na favela está lamentando a morte dos seus e sentindo medo, pois ser favelado te coloca como marginal padrão.
Mas que merda, meu oitão tá até a boca, que vida louca! / Por que é que tem que ser assim? / Ontem eu sonhei que um fulano aproximou de mim, / “Agora eu quero ver ladrão, pá! pá! pá! pá!”, Fim.
Os nossos jovens querem simplesmente viver e isso não é pedir muito não!
Ninguém é mais que ninguém, absolutamente, / Aqui quem fala é mais um sobrevivente. / Eu era só um moleque, só pensava em dançar, / Cabelo Black e tênis All Star. / Na roda da função “mó zoeira!” / Tomando vinho seco em volta da fogueira. / A noite inteira, só contando história, / Sobre o crime, sobre as treta na escola.
Nas periferias de São Paulo, ao contrário, dos bairros nobres da cidade e da Constituição Federal, o que temos na favela é pena de morte, sem mandado ou julgamento. Os agentes do Estado têm passe livre para matar, invadir os barracos, forjar provas contra qualquer um ou extorquir pessoas simples que não fazem parte do cartão postal da cidade.
O que fazer com tudo isto, meu Deus? Quem não passa pelo o que a favela passa diariamente falará que estou exagerando e quem vive isso na pele dirá sabe muito bem como é a vida do Negro Drama. Preste atenção quando vir alguma abordagem policial. Repare que a depender do bairro o procedimento é diferente. Eu mesmo sou frequentemente parado pela polícia. É incomparável a abordagem quando estou na favela e quando estou nos Jardins.
Termino citando um trecho do hino da Campanha de Fraternidade deste ano: …exclusão que leva à morte tanta gente, corrompe vidas e destrói a criação, basta de guerra e violência, Ô Deus clemente! É o clamor dos filhos teus em oração [na favela da Vila Prudente]. Depois de vivermos os quarenta dias no deserto quaresmal, rezamos o mistério da nossa fé paixão, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré, tempo favorável a reflexão sobre o real motivo e consequências dessas mortes e tantas outras. É preciso, pois, decidir qual é nossa atitude diante desta Guerra, mesmo que estejamos da ponte pra lá.
Padre Assis Tavares CSSp, missionário espiritano, de Cabo Verde,
na Favela da Vila Prudente, zona leste de São Paulo-SP (ou só mais um mano preto).
As palavras fogem diante de tanta violência, dor, discriminação, por ser pobre, negro, morra na favela. Conheço vc Pe. Assis, e conpartilho de sua indignação. Aki em Brasília não é diferente, somos só mas um que pode anoitecer e não amanhecer.
Tenhamos sempre fé e coragem para não calar diante de tamanha atrocidades. 👏👏👏