4º Domingo da Quaresma
O olhar que o autor do livro das Crónicas nos transmite sobre o exílio na Babilónia tem muito mais a ver com a sua interpretação religiosa do que com a narração do acontecimento. Na verdade, o Exílio é-nos apresentado mais como consequência de uma infidelidade generalizada e continuada do que o resultado de uma capitulação frente a um inimigo mais forte. Até os setenta anos da sua duração são vistos também na perspetiva da satisfação do descanso sabático, desrespeitado ao longo de muitos anos.
Por isso, o seu termo tem tanto de inesperado como de surpreendente, a ponto de o autor apresentar Ciro, o Rei do novo império persa, como um fiel executor dos planos e das ordens do Altíssimo.
Este olhar diferente sobre o sofrimento conduz-nos ao alto do Calvário, onde Cristo, pregado na cruz, se torna fonte de vida: “quem n’Ele acredita tem a vida eterna”! De instrumento ignominioso de castigo, qual labéu a marcar não apenas o justiçado, mas também todos os seus, a Cruz torna-se na expressão máxima da gratuidade e do amor: “Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito”. E Paulo exclama: “com Cristo, fomos restituídos à vida, com Ele, Deus nos ressuscitou e com Ele nos fez sentar nos Céus! A salvação não vem de vós – é dom de Deus!”
De facto, em Cristo as nossas mortes de cada dia podem tornar-se em fonte de vida, se forem vividas com sentido, abraçadas com amor e por amor. João Paulo II, na encíclica ‘Salvifici Doloris’, comentou assim esta passagem bíblica: “Ainda que a vitória sobre o pecado e sobre a morte, alcançada por Cristo com a sua Cruz e a sua Ressurreição, não suprima os sofrimentos temporais da vida humana, nem isente do sofrimento toda a dimensão histórica da existência humana, ela projeta, no entanto, sobre essa dimensão e sobre todos os sofrimentos uma luz nova… No centro desta luz encontra-se a verdade enunciada no colóquio com Nicodemos: “Deus amou tanto o mundo que deu o seu Filho unigénito”. Esta verdade opera uma mudança, desde os fundamentos, no quadro da história do homem e da sua situação terrena. A palavra ‘dá’ (‘deu’) indica que esta libertação deve ser realizada pelo Filho unigénito, mediante o seu próprio sofrimento. E nisto se manifesta o amor, o amor infinito, quer do mesmo Filho unigénito, quer do Pai, o qual ‘dá’ para isso o seu Filho. Tal é o amor para com o homem, o amor pelo ‘mundo’: é o amor salvífico!”
Por isso, este tempo da Quaresma é o tempo oportuno para nos pormos a caminho com determinação e confiança, já que o caminho está bem sinalizado: testemunharmos a misericórdia e a ternura infinita do nosso Deus junto dos mais pobres, dos mais fracos e abandonados, tornando-nos, na expressão do papa Francisco, “ilhas de misericórdia” no meio do vasto mar da indiferença.
É só com este olhar renovado que também nós poderemos transformar as cruzes, que povoam o nosso dia-a-dia, em prolongamento da Cruz de Cristo, tornando assim redentor também o nosso sofrimento. O resultado final compensa bem o esforço investido! E há por aí tanto sofrimento desperdiçado!
Como Nicodemos, também nós precisamos de passar da ‘noite’ do nosso exílio para a claridade do ‘dia’ de Cristo. E isso passa pelo renovar do nosso olhar, que precisamos de lavar e purificar nas águas abundantes que jorram do coração de Cristo, atravessado pela lança do soldado.