«Também vós quereis ir embora?»
(Jo 6,60-69)
No início do capítulo sexto, João situa-nos na outra margem do lago de Tiberíades, a contemplar Jesus que ensina a multidão. E eis que a Palavra desce a montanha, exigindo ação: “Onde havemos de comprar pão para esta gente comer?” (Jo 6,5). O verbo ‘comprar’ soa nos ouvidos dos discípulos. Filipe, atento à lógica do mercado, ensaia umas contas, em nada semelhantes à matemática divina. Sente-se então impotente perante a situação: nem o correspondente a duzentas vezes o salário diário de um homem em pão a dividir pela multidão chegaria para cada um comer uma migalha. Muito realismo, mas pouco humanismo e, lamentavelmente, não responde à pergunta de Jesus.
André, desanimado com tão pequena oferta e tão grande procura, apresenta uma criança com cinco simples pães de cevada e dois peixes. A pergunta de Jesus não é mais uma vez respondida, mas Jesus não deprecia o dom que descobre em cada um de nós. Bem pelo contrário, valoriza-o. Aquele pouco pão de cevada, alimento dos pobres, que hoje seria pouco litúrgico para uma Fração sagrada, nem por isso O impede de realizar uma fração divina válida e cheia de graça, sentido e satisfação. A multidão é, então, convidada a sentar-se na erva que se fazia abundante, não estivéssemos nas vésperas da Páscoa. Estão, assim, reunidas as condições para um grande ato de cooperação, gestão, administração, partilha, divisão e de ação de graças, celebrado e recordado, erroneamente, como tendo sido de multiplicação, quando todos os evangelistas sublinham a natureza deste acontecimento salvífico de boa economia divina.
A noite cai e os discípulos seguem mar adentro. Eis que se forma uma tempestade no lago. A Palavra com que se alimentaram, sendo doce como mel na boca, mas amarga como fel nas entranhas, produz destes efeitos. A Palavra compromete-nos até às entranhas, lembrando-nos que somos amados, escolhidos e chamados desde o ventre materno para uma missão específica dentro do desígnio universal salvífico. Enquanto isso, Jesus caminha calmamente sobre as águas do lago, contrastando com o medo interior e exterior dos discípulos.
Chega um novo dia e com ele renovada vontade de alimento. Como os animais que se reúnem no lugar onde se lhes dá habitualmente de comer, aí se reúne novamente a multidão na esperança de comer de graça daquele pão agraciado. No entanto, vendo que o “distribuidor” não se encontra por aquela margem e que não há promessas de voltar, a correria instala-se até que O encontram no outro lado do lago. Jesus, ao ver a multidão, não perde a oportunidade: “vós procurais-me, não por terdes visto sinais miraculosos, mas porque comestes dos pães e vos saciastes. Trabalhai, não pelo alimento que desaparece, mas pelo alimento que perdura e dá a vida eterna, e que o Filho do Homem vos dará; pois a este é que Deus, o Pai, confirma com o seu selo” (Jo 6,26-27).
A verdade é que a distribuição gratuita dos dons recebidos de graça converte a multidão para Jesus, o seu ensinamento, também ele com sabor e saber divinos da graça, resulta no abandono de alguns. Durante o diálogo exegético sobre o pão da vida, o ensinamento de Jesus torna-se cada vez mais comprometedor e chocante: é necessário deixar de murmurar para abraçar em espírito e verdade o seu projeto: “Também vós quereis ir embora?” (Jo 6,67).
Sabe-se que os doze mantêm o seu compromisso: “Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6,68). Mas é na resposta de Pedro que os nossos ouvidos se detêm, pois ele resolve simultaneamente duas perguntas de Jesus. Se os ensaios de Filipe e André haviam falhado por causa da interpretação da pergunta de Jesus – “Onde compraremos pão para que eles comam?” (Jo 6,5) –, a resposta de Pedro à nova provocação de Jesus responde na totalidade.
Pedro, naturalmente e sem saber como, faz uma associação plena entre o Alimento e a Palavra que dá Vida eterna. O verbo ‘comprar’ não é significativamente mais associado ao dinheiro, porque as contas da economia da salvação regem-se pelos valores da cruz, e passa a ecoar a profecia de Isaías: “Todos vós que tendes sede, vinde às águas. Vós que não tendes dinheiro, vinde! Comprai trigo para comer sem pagar. Levai vinho e leite, que é de graça. (…) Se me escutardes, havereis de comer do melhor, e saborear pratos deliciosos”. (Is 55,1-2).
Nós que um dia professámos a nossa fé em Cristo, Salvador do Mundo, somos hoje desafiados a tomar consciência da exigência comprometedora dessa mesma fé. Naquela interpelação de Jesus, “também vós quereis ir embora?” (Jo 6,67), está implicado o “nós”, o plural, e nunca somente o “eu”, o singular. Professámos a fé no seio de uma comunidade e é no seio dessa mesma comunidade que a resposta deve ser discernida, vivida e proclamada em voz alta. Como os discípulos, tenhamos a coragem de procurar junto à cruz de Jesus gestos e palavras renovadores para os desafios de hoje.
Estaremos nós predispostos a acolher a Sabedoria de Deus e a deixar transformar-nos pela economia da salvação? Estaremos nós disponíveis a professar a nossa fé na Palavra que desceu do céu e alimenta os famintos? Estaremos nós verdadeiramente ordenados à união, sempre e cada vez mais, em Jesus Cristo que, um dia, nos escolheu e chamou?
Estaremos nós predispostos a acolher a Sabedoria de Deus e a deixar transformar-nos pela economia da salvação?
Com Libermann, rezemos:
“A quem iríamos, Senhor? Vós tendes palavras de vida eterna. Sois Vós o nosso único desejo, nosso Mestre soberano, e só em Vós queremos pensar. Toda a nossa alegria e felicidade estão nas palavras divinas, tão cheias de graça, que saem de vossa boca adorável e que nos inundam de amor e de suavidade. São palavras de vida, de vida sem fim. Viestes dar-nos essa vida, e não queremos outra. Porque nos perguntais, então, querido Mestre, se também nós vos queremos deixar? Não, queremos é unir-nos cada vez mais a Vós, porque ninguém senão Vós tem esta palavra de vida que tanto nos alegra e alenta. A quem iríamos?”.
(CSJ 6,69; Antologia Espiritana, I p. 115)