«Onde está o teu irmão Abel?»
(Gn 4,9)
Adão e Eva, expulsos do jardim, encontram-se agora a oriente do Éden. Tudo parece estar por sua conta e risco. Aquele que havia sido feito da terra colhe agora o fruto cultivado pelo suor do seu trabalho. Aquela que havia sido feita para ser berço vital gera agora novas vidas com o suor das suas dores. O aceso à árvore da Vida está-lhes vedado. Não podem voltar a entrar no jardim das delícias divinas, mas Deus pode sair ao encontro da sua obra-prima para montar tenda no jardim dos seus corações.
Eis que da poeira da terra brota a vida e do seio de Eva a humanidade. E com o auxílio de Deus nascem Caim e Abel. Caim surge no seio daquele casal como uma lança, presente obtido da misericórdia divina. Mas, como todo o presente, será propenso ao ciúme. Abel, por sua vez, será uma lufada de ar, transportando consigo a fugacidade da vida.
Eis que certo dia, Caim, lavrador por vocação, oferece em sacrifício frutos da terra que cultiva. Por sua vez, Abel, pastor por vocação, oferece primogénitos do rebanho que cuida. Sem razão aparente, Deus escolhe e abençoa Abel em detrimento do seu irmão Caim. Terá sido por questões litúrgicas? Nenhum deles é sacerdote… Por questões de sabor? Nenhum deles é cozinheiro… A única coisa que sabemos é que Deus escolhe livremente Abel, mas nem por isso abandona Caim aos seus ciúmes: “Porque estás zangado e de rosto abatido?” (Gn 4,6).
Caim sente dificuldades em aceitar aquela bênção. Não compreende como é que alguém da sua própria casa e da sua própria família seja escolhido por Deus. Porque não eu? Não consegue acolher a bênção do seu irmão como uma bênção que, brotando no próprio seio da família, abençoá-lo-á também a ele, assim como a toda a família.
A solução engendrada aparece-lhe simples… Durante um passeio fraterno pelo campo, eis que aquele que se sentia aparentemente rejeitado na sua solidão se lança como flecha sobre o seu irmão, não para lhe dar o abraço do perdão, mas o beijo de morte. Abel jaz morto no chão! Não somente o homem Abel, mas o irmão, o pastor, o filho… Abel é morto para o mundo e o seu sangue clama da terra por justiça. Caim mata-se para Deus e o seu sangue não pode ser vertido na terra. Abel está morto e Caim longe de Deus numa fuga sem fim no infinito de si mesmo e da culpa.
Não é só o sangue de Abel que ainda grita hoje por justiça. A voz de Deus ainda se faz ecoar: “Onde está o teu irmão?” (Gn 4,9) “Que fizeste?” (Gn 4,10) Deus quer explicações, não para Ele nem por causa d’Ele, mas para nós e por causa de nós. Deus quer que nos conheçamos a nós mesmos nas nossas fragilidades e nos nossos sucessos, nas nossas omissões e nas nossas ações, nos nossos silêncios e nas nossas palavras. Não somos guardas dos nossos irmãos, mas somos corresponsáveis da autenticidade da sua resposta em comunidade ao chamamento de Deus. Podemos não ser guias, mas somos companheiros de viagem da conversão de uns para os outros e todos juntos para Deus. Quem nos separará do Amor de Deus? A raiva, o ciúme, a mentira, o crime, o egoísmo, a alienação…
Continuamos a ser chamados a deixarmo-nos desinstalar para acolher a luz que brilha sobre os nossos irmãos como sendo uma luz que nos ilumina a nós também. Continuamos a ser chamados, todos e cada um, a não fugirmos das questões mais complicadas: “Onde está o teu irmão?” (Gn 4,9) “Que fizeste?” (Gn 4,10). Ou então: O que é que ainda não fizeste pelo teu irmão? O que é que estás disposto a fazer por ele?
Estaremos, porventura, predispostos a fazer um êxodo de nós mesmos para abraçar o outro na diferença? Estaremos nós disponíveis para acolher a ação de Deus em nós e através de nós no mundo? Estaremos nós verdadeiramente ordenados a construir o Reino de Deus?
Estaremos, porventura, predispostos a fazer um êxodo de nós mesmos para abraçar o outro na diferença?
Com Poullart de Places, rezemos:
“Vós me procuráveis, Senhor, e eu fugia de Vós. Destes-me a razão, mas eu negava-me a fazer uso dela. Queria discutir convosco e Vós não consentistes. Não merecia eu que me tivésseis abandonado de vez, que vos tivésseis cansado de me fazer bem e começado a fazer-me mal? Ao ser castigado, sentindo o peso do vosso braço, talvez eu tivesse reconhecido o meu pecado, talvez tivesse sentido a enormidade dos meus crimes. Como sois amável, meu divino Salvador! Não quereis de modo nenhum a minha morte, mas tão somente a minha conversão! Como se tivésseis necessidade de mim, tratais-me sempre com suavidade! Parece que é uma honra para Vós converter um coração tão insensível como o meu.”.
(Antologia Espiritana, I p. 25)