«Fala, Senhor; o teu servo escuta!»
(1Sam 3,10)
Enunciar o nome de Samuel é, por si só, pronunciar o nome de Deus. Aquele jovem é fruto do desejo de uma mãe estéril que não se cansava de pedir a Deus aquilo que aos homens parecia impossível. As lágrimas daquela mãe tornam-se torrentes de água viva em seu seio. Ana, não mais estéril, concebe e dá à luz um filho que será colocado ao serviço de Deus (1Sam 1). Samuel é, portanto, um simples servo de Deus sob a orientação de Eli.
Até que um dia, algo muda. Deus irrompe a rotina do silêncio e chama: «Samuel! Samuel!» Mas os ouvidos do coração de Samuel ainda não captavam nem os passos nem a voz de Deus. Ele, que havia feito do Templo a sua morada e vivia paredes meias com a arca da Aliança, ainda não conhecia Deus nem a sua Palavra. Deus chama mesmo aqueles que nunca ouviram falar d’Ele, porque Deus chama sem medo de ouvir um não.
Samuel sente-se chamado, mas reage equivocamente, pensando que é Eli quem o está a interpelar. A sua resposta – “Eis-me aqui” (1Sam 3,4) –, rápida por certo, não foi corretamente dirigida. Samuel responde prontamente a quem estava habituado a servir: “Aqui estou, pois me chamaste” (1Sam 3,5.8). O chamamento de Deus ecoa então como uma pergunta no interior de Samuel: quem me chamou? Eli ainda não compreendia a sua missão no meio daquele vai e vem de um jovem questionado por uma voz que chama sem saber de onde, nem para onde. Até que reconhece a ação de Deus nesta forma estranha de agir e ensina Samuel a voltar-se para Deus e a rezar “Fala, Senhor; o teu servo escuta!” (1Sam 3,10).
Provocados pela vocação de Samuel, tenhamos a coragem de parar e de perguntar a nós mesmos se o nosso mundo interior é como uma cebola ou como uma batata. Temos consciência de que a nossa vida é como uma batata, onde, escondida por uma fina casca, subjaz uma realidade bem substancial e vital. No entanto, vivemo-la, não raras vezes, como se fosse uma cebola. As camadas são mais do que muitas: opiniões, verdades parciais e provisórias, paixões, aparências, modas… Esgotamo-nos a desfilar cascas e camadas, esquecendo o centro que dá realmente acesso ao pleno sentido da vida.
“O Senhor, naquele tempo, falava raras vezes e as visões não eram frequentes” (1Sam 3,1b). Esta frase parece um sumário da nossa experiência de Deus. Habituados a viver na casa de Deus e a servi-l’O, o nosso quotidiano torna-se, por vezes, fragmentário e ausente em relação à manifestação de Deus. Não tenhamos medo, Deus não perde a esperança de nos possuir inteiramente e continua a interpelar-nos como fez com o jovem Samuel. Deus continua a comunicar-nos… cabe a nós encontrarmos uma pedagogia espiritual e um pedagogo que nos ajudem a voltar para Ele os nossos sentidos interiores. Fixemos a nossa confiança naquela lâmpada que ainda não se apagara. Nessa luz, ainda que ténue e fumegante, arde a presença de Deus e reside a nossa confiança mesmo em situações de cegueira como a de Eli ou de imaturidade da fé como a de Samuel.
Estaremos, porventura, predispostos a escutar e a acolher o chamamento que Deus nos dirige cada dia? Estaremos nós disponíveis a fazer um êxodo de nós mesmos para centrar a nossa vida em Cristo e no seu evangelho? Estaremos nós verdadeiramente ordenados a converter a nossa resposta para Deus?
Estaremos, porventura, predispostos a escutar e a acolher o chamamento que Deus nos dirige cada dia?
Com Poullart de Places, rezemos:
“Vamos, minha alma, já é tempo de acederes a tão amáveis convites. Não será este o momento de te decidires a abandonar todos os teus sentimentos mundanos para poderes, com mais atenção e recolhimento, reconhecer a tua ingratidão e a dureza do teu coração para com a voz do teu Deus? Não deverias ter vergonha de teres combatido tanto tempo, de teres destruído, desprezado e calcado aos pés o sangue adorável do teu Jesus?”.
(Antologia Espiritana, I p. 24)