Estas duas palavras são bombásticas. Um verbo no imperativo que nos dá uma ordem, que nos manda ser ou fazer algo. Não nos pode deixar quietos e indiferentes. Ser o quê? Ser misericordioso. Um pedido feito por alguém a outra pessoa. Esse alguém é Jesus, e essa pessoa, sou eu.
Palavra de Deus
Vós, porém amai os inimigos, fazei o bem e emprestai, sem esperar coisa alguma em troca. Então, a vossa recompensa será grande e sereis filhos do Altíssimo, porque Deus é bondoso também para com os ingratos e maus. Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso.
Lc 6, 35-36
Ser misericordioso
Jesus Cristo, no Evangelho segundo Lucas, no contexto das bem-aventuranças, apresenta a «regra de ouro» que consiste em amar a todos, inclusive os inimigos; e acrescenta: «Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso» (Lucas 6, 36). Mais do que uma ordem, estas palavras de Jesus são a revelação de uma possibilidade: elas atestam a possibilidade do ser humano participar da misericórdia de Deus, ou seja, de dar vida, de mostrar ternura e amor, de perdoar, de co-sofrer com quem sofre, de sentir a unicidade do outro e de lhe estar próximo, de suportar o outro e de ter paciência com a sua lentidão e as suas incapacidades.
Em várias passagens do Antigo Testamento, Deus é designado como «misericordioso e compassivo» — esse é o seu nome: «Deus misericordioso e clemente, vagaroso na ira, cheio de bondade e de fidelidade» (Êxodo 34, 6); «És um Deus misericordioso e compassivo, paciente e grande em bondade e fidelidade» (Salmo 86, 15); «O Senhor é misericordioso e compassivo, é paciente e cheio de amor» (Salmo 103, 8); «O Senhor é bondoso e compassivo» (Salmo 111, 4). Ora, no Novo Testamento, Jesus Cristo, através da sua maneira de ser e de viver, apresenta-se como o rosto humano de Deus, isto é, da sua misericórdia e compaixão: «Compadecido, Jesus estendeu a mão, tocou-o e disse: «Quero, fica purificado» (Marcos 1, 41); «Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor» (Marcos 6, 34); «O Senhor compadeceu-se dela e disse-lhe: «Não chores» (Lucas 7, 13). O discípulo, cada um de nós, seguindo o Mestre, pela fé e pelo amor, também pode viver a misericórdia e a compaixão.
Pistas de reflexão
- Olhando para os imensos gestos de misericórdia de Jesus, como posso imitá-lo nesta dimensão da misericórdia?
- Ser misericordioso exige muito de cada um de nós. Em que áreas da minha vida pessoal e comunitária devo ser mais misericordioso?
Viver a misericórdia
Na Bíblia, a misericórdia não é apenas uma emoção, um sentimento perante o sofrimento do outro: ela nasce como ressonância aguda do sofrimento do outro dentro de mim mas, depois, torna-se ética, práxis e virtude. É o que acontece com o samaritano da parábola, que faz tudo o que está ao seu alcance para aliviar concretamente os sofrimentos daquele homem deixado moribundo à beira do caminho: «‘E quem é o meu próximo?’. Tomando a palavra, Jesus respondeu: ‘Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo: “Trata bem dele e, o que gastares a mais, pagar-to-ei quando voltar”. Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?’. Respondeu: ‘O que usou de misericórdia para com ele’. Jesus retorquiu: ‘Vai e faz tu também o mesmo’» (Lucas 10, 29-37).
A misericórdia deve ser feita: «Vai e faz tu também o mesmo» — diz Jesus Cristo ao doutor da Lei, a quem contou a parábola do samaritano. Assim, os discípulos ficam a conhecer a vontade de Deus; e também sabem como eles próprios devem querê-la e praticá-la: seguindo as pegadas de Jesus Cristo e aprendendo com Ele, que é «manso e humilde de coração» (Mateus 11, 29).
Pistas de reflexão
- Na minha vida pessoal e na minha acção pastoral uso de misericórdia para com o meu próximo?
- Como posso exercitar a misericórdia no meu dia-a-dia e sobretudo no exercício da minha acção missionária?
Compromisso: Não basta ser bom, importa ser misericordioso
A Semana Santa convida-nos a pensar sobre o sentido maior das nossas vidas à luz daquele que foi radicalmente humano e por isso também divino. Ele não se propôs fundar uma nova religião. Nem pretendeu que as pessoas fossem mais religiosas. Mas o que de fato quis, foi que todos, com a religião ou sem ela, fossem mais humanos, solidários, fraternos, justos, amorosos e misericordiosos.
Para Jesus não bastava ser bom. Tinha que ser misericordioso. Só assim seria plenamente humano. O Deus que anunciava era um Pai bom mas principalmente era um Pai misericordioso. Sentir a dor do outro, abaixar-se até ao seu nível e compreender a sua vulnerabilidade sem logo julgá-la, constituía a originalidade da sua mensagem.
Quem quer ser misericordioso precisa de um coração forte, firme, fechado ao tentador mas aberto a Deus; um coração que se deixe impregnar pelo Espírito e levar pelos caminhos do amor que conduzem aos irmãos e irmãs; no fundo, um coração pobre, isto é, que conhece as suas limitações e se gasta pelo outro.
P. Nuno Miguel Rodrigues