S. João Paulo II, papa, quinze anos após o Concílio Vaticano II, e inspirando-se, em boa medida, na sua doutrina, escreveu três notáveis encíclicas: “Redentor do Homem”, dedicada a Jesus Cristo; “Senhor que dá a Vida”, dedicada ao Espírito Santo; e “Rico em Misericórdia”, dedicada ao Pai. Desejou, assim, conduzir os filhos da Igreja Católica e todos os homens de boa vontade para o interior do Mistério da Santíssima Trindade, verdadeiro coração da Fé cristã e fonte da Misericórdia. Coisa idêntica aconteceu com Bento XVI, papa emérito, com outra tríade de notáveis encíclicas sobre as virtudes teologais da Fé (“Luz da Fé”); da Esperança (“Salvos em Esperança”); e da Caridade (“Deus é amor”). A Encíclica “Rico em Misericórdia” que inspira o presente trabalho, é um verdadeiro hino à Misericórdia do nosso Deus, Criador e Redentor.
Porque escreveu o Papa S. João Paulo II a Encíclica “Rico em Misericórdia”?
Porque estava convicto de que a mentalidade contemporânea parece opor-se ao Deus da Misericórdia e tende a separar da vida e a tirar do coração do homem a própria ideia de misericórdia. E isto, porque o enorme desenvolvimento da ciência e da técnica, nunca antes verificado na história, lhe possibilitou dominar a terra. Tal domínio, frequentemente em detrimento do cuidado, parece encher o homem de orgulho e de auto- suficiência e não deixar espaço para a misericórdia. Confiar em Deus e esperar d’Ele a misericórdia exige humildade e consciência dos próprios limites que muitos homens de hoje rejeitam, levados por sonhos enganadores de omnipotência.
Lê-se, a propósito, no número 9 da G. S. do Concílio Vaticano II: “O homem contemporâneo apresenta-se, simultaneamente, poderoso e débil, capaz do melhor e do pior; na sua frente abre-se o caminho da liberdade ou da escravidão, do progresso ou da regressão, da fraternidade ou do ódio; está consciente que depende dele a boa orientação das forças que suscitou, e que tanto o podem esmagar como servir, proporcionar-lhe um futuro melhor como ameaçá-lo.”
Aumenta, pois, nas pessoas a sensação de ameaça e de medo existencial provenientes de um possível conflito à escala universal que, como diz o Papa Francisco já está em marcha, aos retalhos. Muitas pessoas vêm sendo privadas da liberdade interior, da possibilidade de manifestar publicamente a verdade e a fé que professam, da faculdade de obedecer à voz da consciência. Grupos de criminosos praticam as torturas mais sofisticadas e diversos tipos de violência refinada. A família é, ferozmente, atacada em seus fundamentos, a desordem moral é grande, a corrupção e a fraude um vírus que destrói as relações humanas. São muitos os atentados contra a dignidade das pessoas. Daí a necessidade de suplicar, instantemente, a Deus a Sua Misericórdia. A Igreja tem a missão de apelar e estimular a todos a recorrer a esta misericórdia, em nome de Cristo e em união com Ele, em favor da “geração” contemporânea.
Pistas de reflexão
- Para além das situações do mundo atual, referidas no texto, que precisam do remédio da misericórdia, que outras situações pode apontar?
Jesus Cristo, rosto visível da misericórida do Pai
A Misericórdia manifestou-se de forma luminosa, no Mistério Pascal de Jesus Cristo, como “aquele amor que é mais forte do que a morte, mais poderoso que todo o pecado e que todo o mal e que ergue o homem das suas quedas mais profundas e o liberta das maiores ameaças.” Por isso, a Igreja exclama na vigília pascal, ao anunciar solenemente a Páscoa: “Ó feliz culpa que nos mereceu tão grande Redentor!” E S. Paulo escreveu: “Onde abundou o pecado superabundou a graça”. É a afirmação da grandeza inaudita do homem e da profundidade do amor de Deus que não retrocede diante do extraordinário sacrifício do Filho, para satisfazer à Sua fidelidade de Criador e Pai para com os homens criados à sua imagem e escolhidos, neste mesmo Filho, desde o “princípio”, para a graça e para a glória! “Quem ama deseja dar-se a si próprio!” No Getsémani e nos acontecimentos de Sexta-Feira Santa, Cristo, que “passou fazendo o bem, curando a todos” e “sarando toda a espécie de doenças e enfermidades”, “mostra-se Ele próprio, digno de amor e de misericórdia, quando é preso, ultrajado, condenado, flagelado, coroado de espinhos, pregado na cruz e expira no meio de tormentos atrozes”, mas não a recebe. Mesmo os mais próximos dele não têm a coragem de o proteger e arrancar da mão dos seus opressores. Cristo dirige-se ao Pai, de cuja misericórdia deu testemunho com todo o seu agir, para que O livre, se possível, de tão amargo cálice de dor, mas não lhe é poupado o tremendo sofrimento da morte na Cruz. No dizer de S. Paulo: “Deus tratou-O por nós como pecado”. Com a paixão e a morte de Cristo, é feita justiça do pecado à custa do seu sacrifício e obediência até à morte, e os pecados do homem são “compensados”. Como escreveu S. Paulo: “Onde abundou o pecado superabundou a graça”. A justiça divina revelada na cruz de Cristo vai muito além da pura justiça porque nasce do amor e se realiza no amor, produzindo frutos de salvação e porque capacita o homem para aceder à plenitude da vida e da santidade. A Redenção traz, por isso, em si, a revelação da Misericórdia na sua plenitude. Entretanto, a Cruz de Cristo não é ainda a última palavra sobre a Misericórdia de Deus. Sê-lo-á o pregão das mulheres, na manhã da Ressureição, que se multiplicará rapidamente no tempo e no espaço: RESSUSCITOU! Tudo teria sido inútil sem este desfecho glorioso! Crer no Filho crucificado e ressuscitado significa “ver o Pai, ”como desejava o apóstolo Filipe, significa crer que o amor está presente no mundo e é mais forte que toda a espécie de mal, incluindo a morte. A misericórdia, dimensão essencial do amor é o antídoto mais eficaz contra o mal que assedia e atinge o homem no âmago do seu coração e o pode levar à morte eterna.
A parábola do filho pródigo
A misericórdia é uma profunda atitude de bondade. Quando esta atitude se estabelece entre duas pessoas, elas passam a ser, não só benévolas uma para com a outra, mas também reciprocamente fiéis, por força de um compromisso interior e, portanto, também em virtude de uma fidelidade para consigo próprias. O homem pode e deve esforçar-se por ser fiel, ajudado pela graça. Deus, porém, só pode ser fiel, sempre. É quando rompemos a nossa aliança com Ele pelo pecado que a sua misericórdia revela o seu aspeto mais profundo: amor que não volta atrás, amor mais potente que a traição, graça mais forte que o pecado. Desta fidelidade de Deus ao Seu amor para connosco brota o fruto saboroso do Seu perdão, nossa reconstituição na graça e o restabelecimento da aliança interior rompida. Esta foi a experiência vivida pelo filho pródigo de que nos fala S. Lucas (Lc. 15, 11-32) e que representa o homem de todos os tempos, a começar por aquele que foi o primeiro a perder a herança da graça e da justiça original. Perdida a dignidade de filhos, na casa paterna de Deus, pelo “esbanjamento” de toda ou parte da herança d’Ele recebida, os “pródigos” de todos os tempos podem readquiri-la “amadurecendo” o sentido da dignidade perdida, que brota da relação de filhos com o Pai, convertendo-se a Ele que é fiel à paternidade e ao amor que desde sempre lhes dedicara. Ele revela a Sua fidelidade na prontidão em recebê-los em Sua Casa, envolvendo-os num clima de alegria e de festa, com escândalo dos “perfeitos” sem misericórdia, semelhantes ao filho mais velho da parábola. Porquê a festa? Porquê a alegria? Porque a vida dos filhos está salva, foi reencontrada. A fidelidade do Pai a Si próprio está inteiramente centralizada na vida dos filhos perdidos, na sua dignidade. A solicitude do Pai para com os filhos constitui a medida do Seu amor misericordioso.
Pistas de reflexão
- Pela leitura e reflexão dos textos acima que entendimento tem da misericórdia de Deus, revelada em Cristo?
P. Adélio Fonte