Se a misericórdia é, no dizer do Papa Francisco, “a palavra-chave para indicar o agir de Deus” (Misericordiae Vultus) e se somos chamados a ser misericordiosos como o Pai, então precisamos de nos munir dos instrumentos necessários para que a misericórdia se torne em nós não apenas um adorno ou um atributo acessório, mas o registo próprio de toda a nossa existência, o nosso modo de ser e de nos relacionarmos com os outros.
Palavra de Deus
Jesus foi para o Monte das Oliveiras. De madrugada, voltou outra vez para o templo e todo o povo vinha ter com Ele. Jesus sentou-se e pôs-se a ensinar. Então, os doutores da Lei e os fariseus trouxeram-lhe certa mulher apanhada em adultério, colocaram-na no meio e disseram-lhe: «Mestre, esta mulher foi apanhada a pecar em flagrante adultério. Moisés, na Lei, mandou-nos matar à pedrada tais mulheres. E Tu que dizes?»
Faziam-lhe esta pergunta para o fazerem cair numa armadilha e terem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se para o chão, pôs-se a escrever com o dedo na terra.
Como insistissem em interrogá-lo, ergueu-se e disse-lhes: «Quem de vós estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra!» E, inclinando-se novamente para o chão, continuou a escrever na terra. Ao ouvirem isto, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, e ficou só Jesus e a mulher que estava no meio deles.
Então, Jesus ergueu-se e perguntou-lhe: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?» Ela respondeu: «Ninguém, Senhor.» Disse-lhe Jesus: «Também Eu não te condeno. Vai e de agora em diante não tornes a pecar.»
Jo 8, 1-11
Estar bem consigo
Na impressionante narrativa da mulher que cometeu adultério e que é trazida à presença de Jesus, o evangelista João refere que a pecadora estava no meio. Os seus acusadores centraram-se no seu pecado e também na sua intenção de apanhar Jesus em falso. Eles nem por um momento se questionaram sobre si mesmos, nem a sua interação com Jesus tinha como objetivo qualquer tipo de aprendizagem e crescimento para si próprios. Estavam encerrados nas suas certezas e esquemas de segurança legal e moral e a sua interação com os outros servia, não para se questionarem, aprenderem e crescerem, mas para endurecerem ainda mais as suas posições. Jesus rompe esta atitude defensiva, rígida e fechada e convida-os a olhar para si mesmos: “Quem nunca tiver pecado, que atire a primeira pedra”. O poder da argumentação dos acusadores desmorona como um castelo de cartas; deixa de fazer sentido a acusação e a busca de bodes expiatórios… O que esses homens fizeram com a pergunta de Jesus ficou em aberto: o reencontro com a própria realidade pessoal é necessário para que a reconciliação com os outros aconteça, para que o registo da acusação e da condenação ceda lugar à humilde aceitação de que estamos todos na mesma barca e que precisamos uns dos outros para chegar a Deus.
Quem não está reconciliado consigo mesmo dificilmente poderá realmente estar reconciliado com os outros. Quem vive oprimido pelas feridas da sua própria história pessoal terá dificuldade em reparar e cuidar das feridas dos outros; quem não se respeita a si mesmo ou se acha menor ou inferior, dificilmente conseguirá acreditar no respeito ou valorização que os outros lhe deem. Quem não se ama a si mesmo dificilmente acreditará no amor que os outros lhe têm. E quando não nos sentimos amados, defendemo-nos! Quando nos sentimos feridos, centramo-nos em nós e vamos tentando sobreviver… e isso tira-nos energias para realmente pensar nos outros sem que essa atenção aos outros não vise, no fundo, algum tipo de gratificação pessoal.
É por isso que a “Regra de Ouro”, o grande mandamento do amor, inclui uma referência a amar-se a si mesmo: “Amar o próximo como a si mesmo” (Cf. Mt 22, 39). Se integramos a nossa história pessoal, se assumimos as nossas feridas, se nos reconciliamos com os nossos erros e com os erros que outros cometeram sobre nós, então as nossas fragilidades podem tornar-se um grande potencial de compaixão: o ferido compreende e ama os outros feridos; o pecador compadece-se dos outros pecadores, porque experimentou ele próprio a doçura do perdão de Deus e do “auto perdão” e libertou-se do horror da rigidez da auto rejeição e da auto condenação.
Pistas de reflexão
- Até que ponto a autoestima é importante na vida de um cristão que quer viver a sério o desafio da misericórdia e do amor?
- Olhando para os conflitos que existem à nossa volta, qual a importância da cura interior para que as relações interpessoais se tornem mais saudáveis?
Estar bem com os outros
A partir da tomada de consciência do nível da nossa autoestima e da nossa reconciliação interior, podemos crescer na tomada de consciência da qualidade das nossas relações. Não nos basta a boa vontade, embora esta seja indispensável! Todos sabemos por experiência o quanto a multiplicação de boas intenções nas relações com os outros (familiares, colegas, amigos…) nem sempre se traduziram em sucesso e reconciliação. Facilmente, identificamos as culpas dos outros nesses esforços frustrados de boas relações. Mas o que realmente nos ajudaria seria identificarmos as nossas próprias dificuldades de estabelecer relações humanas saudáveis e equilibradas.
Fala-se hoje muito de assertividade: é a faculdade de “ficar bem com toda a gente sem nos deixarmos pisar” (cf. Olga Castanyer), a capacidade de fazer valer a verdade e a justiça em cada situação, de modo a que os meus direitos sejam defendidos, não tanto por serem os meus, mas por corresponderem à verdade e à justiça. Isso requer que saibamos reconhecer as nossas possíveis dificuldades de nos afirmamos saudavelmente nas relações sociais sem nos diminuirmos, nos encolhermos ou recearmos ser nós mesmos, por um lado; e sem agredirmos ou afirmarmos os nossos direitos de um modo violento, autoritário ou altivo. Tanto a insegurança pessoal (o medo de sermos nós próprios) como a agressividade revelam a nossa fragilidade e falta de autoestima. A assertividade, enquanto expressão de equilíbrio no nosso modo de estar com os outros, pode ser o começo de uma relação verdadeiramente aberta à caridade, à autêntica auto doação, à misericórdia.
Podemos com razão perguntar-nos: como chegar a esse equilíbrio pessoal e psicológico, de tal modo que se constitua a base para o desenvolvimento de virtudes ao serviço do amor? Como cristãos, podemos identificar vários meios: a busca sincera de um maior autoconhecimento, que deverá passar pelo acompanhamento espiritual, pela oração, pelo exame de consciência, pela capacidade de nos questionarmos e de reconhecermos com verdade os nossos limites e grandezas. Por aí começará a nossa reconciliação e poderá crescer a nossa abertura à misericórdia de Deus!
Pistas de reflexão
- Olhando para nós e à nossa volta, que sinais encontramos de timidez ou de violência, nas relações humanas? Podemos fazer alguma coisa para melhorar a situação, no que a nós diz respeito?
- Qual o lugar do “acompanhamento espiritual” (ou “direção espiritual”) na nossa vida? Sabemos o que é? Integrámos este recurso nas nossas rotinas?
Compromisso
Para podermos viver em espírito e verdade, acolhendo as moções do Espírito de Deus, precisamos de enfrentar a verdade profunda do nosso ser, reconhecendo os elementos naturais (psicológicos, sociais…) que precisam de ser equilibrados, curados, libertados.
Nesse sentido, podemos pedir ao Senhor a graça de identificar em nós os aspetos em que precisamos de crescer na autoestima, dispondo-nos ao mesmo tempo a procurar os necessários meios para esse crescimento: reflexão pessoal autocrítica; diálogo com quem nos possa ajudar; oração que ponha diante de Deus o concreto da nossa vida; busca sincera de crescer na qualidade humana das nossas relações.
Comprometermo-nos a sério no crescimento da nossa autoestima e da nossa assertividade é um passo importante para nos tornarmos mais capazes de uma autêntica misericórdia. E esse é um contributo importante para uma cada vez mais saudável participação na Missão de Jesus Cristo!
P. Pedro Fernandes