Entramos em maio com a bênção de São José, o operário carpinteiro. Jesus, é ele próprio apresentado como “o filho do carpinteiro” (Mt 13,33), ou simplesmente “o carpinteiro” (Mc 6,3). É por isso que venho aqui reclamar, esperem só um pouco.
A maneira como Jesus partilha e observa a vida por onde passa é surpreendente. Nas suas parábolas fervilha a vida do mar, do campo, da cidade, da casa, do templo. Basta ir até ao capítulo 13 de Mateus e ver como Jesus aprendeu e ensinou a partir dos agricultores, por isso falou do semeador, de trigo e de joio, de grão de mostarda. Ou então dos pescadores que lançam as redes, ou da mulher que mistura farinha e fermento, ou do que procura tesouros e pérolas.
Mas Jesus, o filho do carpinteiro, não deixou uma parábola, uma analogia, um elogio aos carpinteiros. Por isso reclamo. Lembrou-se dos trabalhadores da vinha (Mt 20,1), mandou-nos olhar as aves do céu, os lírios do campo (Mt 6,25), citou os viajantes (Lc 10,29), os militares (Lc 14,31), os pastores (Lc 15,4), os devotos e beatos (Lc 18,9). Até os contabilistas, meu Deus, até os contabilistas (Lc 16,1ss)!! Foi buscar exemplos aos juízes (Lc 18,1), aos investidores (Lc 19,11), só aos carpinteiros é que não. É certo que falou da construção da casa sobre a rocha (Mt 7,24), o que pressupõe operários carpinteiros, mas é poucochinho. Por isso reclamo. Custava muito ao filho do carpinteiro falar de madeiras nobres e simples, de móveis e de soalhos, de travejamentos e da arte de fazer uma porta?
Eu sei, a Palavra de Deus acolhe-se, não se inventa. Por isso reclamo, não acrescento. Mas, por razões que eu cá sei, gostava que Jesus tivesse deixado uma parábola em que falasse da escolha da madeira, da arte de usar a plaina e o formão, do esquadro e do serrote. Não era necessário, mas eu gostava. E os carpinteiros também.
Eu sei, a Palavra de Deus acolhe-se, não se inventa. Por isso reclamo, não acrescento. Mas, por razões que eu cá sei, gostava que Jesus tivesse deixado uma parábola em que falasse da escolha da madeira, da arte de usar a plaina e o formão, do esquadro e do serrote. Não era necessário, mas eu gostava. E os carpinteiros também.
“Crónica” é uma rubrica mensal do jornal “Ação Missionária“, pelo P. Aristides Neiva
Muito bem dito ( A Palavra de Deus acolhe-se não se inventa )
Caro Sr Padre Neiva
Li com atenção este seu artigo. Se me permite avanço com algumas hipóteses para as suas dúvidas e questões.
1º – Existe uma máxima popular que diz que “o segredo é a alma do negócio” … Ora sendo o negócio de Jesus a carpintaria, pelo menos após a morte de Seu Pai José, e provavelmente sendo também a única fonte de sustento de Sua casa, não me parece provavel que revelasse os segredos do Seu êxito profissional, permitindo assim á concorrência uma investida nas Suas economias. Isso seria um autêntico apedrejamento profissional!
Infelizmente, é esse o risco dos negócios demasiados explícitos, ou dos profissionais que dão explicações muito claras. Veja os médicos, não só escrevem de modo a nada se perceber, como falam uma linguagem técnica completamente inatingível. Eis um segredo bem guardado, que os torna figuras respeitadas e quase míticas. E o negócio prospera. Já os nutricionistas, explicam tudo o que fazem, na mágica combinação e restrição dos alimentos. Mas, por esta explicitude total, esta indiscrição pormenorizada, caem rapidamente no descrédito, motivado pelo ser magro hoje, amanhã ser gordo, o que leva ao desespero dos nutrientes, aqueles que precisam de ser corretamente nutridos. E depois escrevem livros que ninguém leva a sério, hoje uma teoria, amanhã outra … Se se servissem do “segredo” como o fez Jesus, seguramente chegariam à ”alma do negócio”. Ainda que os resultados pudessem acabar por ser os mesmos, ficava, pelo menos, o respeito que é devido aos que mostram saber, mas não querem fazer-se entender. Conheço um nutricionista que dá poucas dietas e nenhumas explicações técnicas. Só receita uns misteriosos manipulados feitos numa farmácia especial, e vai aumentado a sua clientela e rendimentos. Eis o mistério do bom negócio.
2º – Jesus falou no alicerce da casa, não falou do seu levantamento. Nem falou aí da madeira. Ele sabia que esta não se iria impor como um material seguro de construção. Vejam-se hoje os americanos; qualquer tornado ou incêndio lhes leva as casas de madeira no riscar dum fósforo. As tendas sim, essas desmontam-se e remontam-se rapidamente, mas o requinte e gosto afinado americano, não se coaduna com este tipo de habitação.
3 º – Hoje vive-se numa sociedade descartável, como diz Francisco. Uma sociedade em constante mudança. Plástico, coisas leves e baratas, made in China se possível, fugaz e volátil. Nada de papel, nada de livros com folhas, só e-books. Nada de cartas ou telefonemas, ou visitas pessoais. SMS, Face, Twiter e outros assim. Coisas rápidas e estimulantes. Jesus sabia que uma boa madeira pode durar várias gerações. Por isso, sabia que hoje a madeira estaria vertiginosamente condenada por esta sociedade instável. A madeira hoje só serve para papel descartável, fraldas, lenços, guardanapos, pratos, etc. A madeira tem os seus dias contados. Dentro de poucos anos tudo será sintético. Mas, por outro lado, Jesus falou abundante e entusiasticamente do pão, da água, vinho, peixe… Ele sabia que, com a progressão da nouvelle cuisine, estes produtos cada vez mais se destacariam, mas acabariam por perder o significado que lhes queria dar quando falava do Pão da Vida, da Eucaristia, das Bodas de Caná, a pesca milagrosa, só para citar alguns. Acabariam por ficar para o último dos gostos, para degustações privadas, para as sobras de tempo. A culinária e a satisfação dos apetites, esses não, continuarão em progresso franco. Nesta linha, Jesus não falou da madeira, porque ninguém usa a madeira na culinária, e quem a usa, por exemplo, pondo pedaços de pau no vinho para lhe dar gosto a barrica, é rapidamente desmascarado pelos connoisseurs. Um segredo mal guardado…
4º Se Jesus se mostrasse um grande conhecedor de madeiras, que diriam os judeus no calvário? Talvez um “Tu que conheces tanto de madeira, nem pudeste escolher a da Tua Cruz?” ou mesmo, “Dizes que és Rei e nem uma Cruz de pau-santo arranjaste!” e outras assim…
Mas nós hoje podemos escolher a madeira do caixão, da mais reles à mais cara, consoante o estatuto. Na minha família havia uma cómoda valiosa, assinada, feita de madeiras raras, que vinha já dos muito passados. A minha avó, uns anos antes de morrer disse: “Quando morrer quero que o meu caixão seja feito com a madeira desta cómoda” Foi tal a confusão criada, que uma sua nora resolveu pô-la num lar, à espera que ela se esquecesse do seu propósito. Um senhor Alzheimer disso se encarregou.
5º – Por fim, Maria, a Mãe de Jesus terá tido alguma influência nesta reserva de Jesus?
Parece-me bem que sim, que Maria, na Sua feminina sabedoria terá aconselhado Jesus a usar o 1º argumento aqui indicado “O segredo é a alma do negócio”.
Mas também, Maria terá tido uma visão mais alargada, mais nobre e universal. Ela sabia que falar de como trabalhar a madeira, de como fazer uma porta ou um entravamento, é levar-nos a um ambiente redutor e limitado. A árvore é que é importante, não a madeira. A madeira limita-nos no espaço. A árvore abre-nos para o infinito, para o silêncio, para a musicalidade do vento, dos pássaros. A madeira aprisiona, a árvore liberta. O Seu Filho, a verdadeira Árvore da Vida, plasmada na Cruz, se falou só do vinho novo, Seu Sangue, do pão vivo, Seu Corpo, da água, o Seu Espírito, sabia que aí estaria a verdadeira liberdade, que nos projetaria num futuro sem fim.
A madeira prende-nos, vivos e mortos, e apodrecemos. A Árvore da Vida liberta-nos, e em espírito faz-nos subir aos braços do Pai.
Pois Sr Padre, ficam aqui os meus humildes comentários e argumentos para a sua questão. O Senhor, como espiritano, pedirá ao seu Patrão mais próximo, o Espírito Santo, que lhe dê o dom do discernimento, para esta função, se achar vale a pena.
Grato MMB