A crónica de hoje deveria ser sobre a recente carta Encíclica do Papa Fratelli Tutti e o modo como Jesus consegue mudar crenças básicas nos seus ouvintes que redescobrem, na parábola do Bom Samaritano um Deus que desconhecem e que lhes dá a conhecer uma novidade: Até mesmo naquele que consideramos sem valor, o que excluímos por ser diferente, é habitado por Deus que o transforma ao ponto de ser o único capaz de se compadecer pelo pobre irmão que junto à estrada aguardava a morte.
Era para ser sobre isto, mas a morte hedionda de Samuel Paty, professor francês que lecionava Educação Moral e Cívica numa escola de França, arrancou-me deste sonho de fraternidade do papa e atirou-me para a narrativa de Caim e Abel (Gn 4, ss). Todos conhecem, mais ou menos a narrativa, uma espécie de mito que nos convoca à ação e que transforma o que entendemos por justiça no mundo ocidental até aos nossos dias.
Caim, invejoso perante aquilo que considerou ser uma ‘preferência’ de Deus diante das duas ofertas, reage à boa maneira da época do ‘olho por olho, dente por dente’ e mata Abel. Deus, na sua infinita misericórdia (novidade para a época), pergunta a Caim: «Onde está o teu irmão?». Caim foge à interrogação de Deus e refugia-se na indiferença: «Por acaso sou guarda do meu irmão?». A resposta de Deus é forte e impactante: «A voz do sangue do teu irmão clama da terra até mim». Como se o matar o outro, o seu semelhante fosse, não um ato de justiça, mas um erro sem possibilidade de reparação que toca a própria natureza no seu sentido mais profundo.
Estamos perante uma definição muito clara daquilo que mais tarde havemos de chamar “dignidade humana” e que transformaremos num conceito que considera a vida como um bem “inviolável”.
Vivemos hoje sobre esta crença básica e mesmo que não a conheçamos, agimos de acordo com ela sem questionar a sua origem ou validade. Parece-nos, simplesmente, que o reconhecimento do outro como um Outro deve ser condição para a respeitabilidade e conservação da sua existência.
Esta morte, como outras anteriormente, fazem-nos perceber que não é assim tão simples.
De outro modo jamais seria possível denunciar este professor a troco de uns tostões para permitir a sua morte às mãos de um extremista. O problema do mal, explicado pela filósofa Hannah Arendt, ou por Aristóteles, na «A Ética a Nicómaco», podem ser duas obras a consultar para nos ajudar nesta reflexão.
Os tristes acontecimentos da passada semana, que se vão atomizando um pouco por todo o mundo, mostram-nos a importância de conhecermos bem a razão do nosso agir. Por outras palavras de «dar as razões da nossa esperança» como nos pede o apóstolo Pedro.
Afinal, onde está o teu irmão?