No atual contexto da divulgação do Relatório da Comissão independente para o estudo dos abusos sexuais na Igreja Católica, uma intensa atividade de reflexão e debate se tem vindo a realizar no seio da Igreja e da sociedade. Desenvolvendo a este propósito a sua reflexão, o Superior Provincial dos Espiritanos redigiu um comunicado, que aqui publicamos.
Perdão
A atualidade eclesial portuguesa das últimas semanas ficou marcada pela publicação do relatório da Comissão Independente para o estudo de abusos sexuais sobre as crianças na Igreja Católica Portuguesa, que desenvolveu um notável trabalho pedido e viabilizado pela Conferência Episcopal Portuguesa. O que nos é apresentado é doloroso em extremo: magoa-nos a dor das vítimas, envergonha-nos a identidade dos agressores, desafia-nos a complexidade de toda a situação.
É verdade que o problema não se confina aos limites das instituições da Igreja Católica e é também como cidadãos que nos agitamos, pela gravidade e alcance destas situações, em tantas instituições sociais. Mas, como cristãos, é evidente que nos sentimos especialmente implicados e mobilizados, no que se refere à existência destes abusos no seio das nossas instituições católicas, perpetrados por gente que se apresentava como testemunha de Cristo e foi formalmente mandatada para isso. Se os abusos deste tipo são de extrema gravidade em qualquer circunstância, é verdade que se tornam especialmente insuportáveis quando praticados por gente que se pretende exemplar, numa comunidade com o peso e a influência moral que a Igreja tem na sociedade portuguesa.
Algumas vozes estrebucham, pretendendo lançar o ónus da culpa sobre os pretensos inimigos da Igreja, opositores da fé, que acusam de oportunistas numa situação tão grave para, aproveitando-se desta, cumprirem a sua agenda antieclesial. E eu diria que esse não é mesmo o nosso problema, ou será o menor deles, irrisório se comparado com a nossa verdadeira preocupação neste assunto, que é questionarmo-nos sobre como foi possível (como é possível?) uma tal enormidade acontecer dentro da nossa casa. Não só como é possível que a percentagem dos abusadores dentro da Igreja seja comparável à da sociedade em geral (não deveria, entre a liderança dos cristãos, haver um crivo muito mais apertado e exigente?), mas sobretudo como é possível que a autoridade eclesial não tenha, em muitos casos, tomado as medidas necessárias para abordar o problema de modo correto – ao contrário, abordou-o muitas vezes de modo incrivelmente incorreto.
Os discípulos de Jesus sabem que a sua comunidade de fé radica na experiência do perdão: o dom gratuito do encontro com a verdade do Deus que é misericórdia convoca-os ao incómodo desafio de aceitarem encontrar-se com a sua própria verdade, individual e comunitária, feita de grandezas e misérias. Se, como diz Jesus, “a verdade vos libertará”, o reconhecimento desta, em todo o seu fulgor divino e em toda a sua ambiguidade humana, torna-se uma exigência de fidelidade e de vitalidade eclesiais.
Com espanto e horror, dei-me conta de que, também entre membros professos do instituto religioso a que pertenço – a Congregação do Espírito Santo –, se registaram três casos, todos ocorridos num passado relativamente distante, por gente que já não está entre nós há muitos anos. Parafraseando o Papa, numa entrevista concedida em setembro a um canal televisivo português, mesmo que fosse “um só caso, já seria monstruoso”. Dói-nos a dor das vítimas – as que falaram e as que mantiveram as suas histórias fechadas na solidão ferida da memória. Dói-nos que não tenhamos sido capazes de evitar esse horror, nem capazes de criar ambiente para que essas (e outras?) pessoas tivessem sido escutadas mais cedo, acolhidas e, tanto quanto fosse possível, curadas. Resta-nos o perdão, apenas possível de acolher se assumirmos os nomes da nossa verdade e reconhecermos a nossa extrema necessidade de reforma e libertação – ainda que o mais importante não seja essa necessidade interna, mas a cura e o reconhecimento devidos às vítimas.
Peço, por isso, perdão àqueles que dentro da nossa casa viram traídas as suas expetativas de vida e crescimento, pela violência do abuso sexual que sofreram e, também, pela violência de outros abusos, como o abuso espiritual, o abuso de autoridade, o abuso da instituição esmagando pessoas ou da doutrina férrea esmagando a realidade, em vez de a libertar.
Talvez seja também devido um pedido de perdão aos abusadores que não encontraram na Igreja e nas suas instituições (incluindo aquela a que pertenço) o ambiente propício para se libertarem do seu horror ou, pelo menos, para que não fosse possível que esse horror tomasse conta das suas vidas e triturasse as vidas inocentes de outros.
Sei que há muitas e muitas histórias de vida, libertação interior, promoção e desabrochamento das próprias capacidades, contadas por milhares de pessoas que passaram pelos colégios, seminários e outras instituições da Igreja Católica, nas dioceses e nos institutos religiosos, como o meu. Dou graças a Deus por tanto Bem que se viveu e fez, que se vive e faz. Mas sei que atraiçoaríamos esse Bem, essa vida partilhada, essa Graça Divina de que somos veículos, se nos servíssemos precisamente disso para nos escusarmos de culpas reais e negarmos a real obrigação de penitência e libertação. Ainda bem que fazemos o Bem – não usemos isso como escudo para a nossa dificuldade de reconhecer fragilidades internas e de rever formas caducas que não apenas precisam de retificações periféricas, mas de uma verdadeira reforma estrutural.
Por isso, impõe-se que a crise por que passamos seja a oportunidade da reforma de que precisamos. A dor que sentimos na crise fala-nos precisamente dos nossos apegos coletivos a padrões de funcionamento e a modelos de auto compreensão que precisam de revisão, em nome da nossa disponibilidade para a conversão a Jesus Cristo e ao perene desafio do seu Evangelho. Impõe-se diagnosticar as múltiplas manifestações patológicas do clericalismo, que o Papa não se cansa de apontar como mortal inimigo da sinodalidade e que um documento dos Missionários Espiritanos, datado já de 2012 (intitulado: “Espiritanos Padres”), definia como “intrinsecamente pecaminoso, por atentar contra a autêntica natureza daquilo a que a Igreja é chamada a ser”.
O desafio da reconversão terá de passar pelo perdão, mas este não acontecerá sem a confissão da verdade e a sua indispensável retificação. É sabido que, na sua forma de Sacramento, celebrado na Igreja Católica, a Reconciliação precisa da confissão da culpa, em toda a sua crueza, do reconhecimento das suas causas, da decisão clara de as superar e da determinação em reparar o seus maus efeitos. Recordemo-nos disso, para não esquecermos que o perdão, dom que se acolhe, precisa de reforma, que concretiza a disponibilidade real para se ser perdoado. Por isso, só a reforma nos poderá conduzir ao perdão.
Bom tarde. Como se verificou alguns bispos tinham conhecimento dos crimes praticados. O que se limitaram a fazer, transferir os criminosos para outra zonas e algumas vezes para bem longe. Existem formas de fazer justiça a estes casos e fazer a igreja pagar e tratar as vítimas destes crimes. PERDÃO só não serve.
Agradeço a sua reação e concordo consigo quando afirma a necessidade de não deixar passar impunes estes crimes. Quando falo de perdão, não pretendo defender a impunidade dos criminosos nem uma qualquer deslocada espiritualização da reconciliação. Pretendo afirmar um processo de purificação e reconciliação dentro da Igreja, que incluirá medidas concretas de reforma. Só aí a Igreja poderá estar aptar a um perdão prévio de Deus, que supõe a capacidade humana para o acolher. O perdão será necessidade da Igreja, como um todo, e não se entende, neste assunto como em todos os outros, sem o indispensável pressuposto da conversão.
As palavras com que mais me identifico perante esta enormidade. Mil vezes obrigada!
Eu digo que estou completamente de acordo com a reflexão do Provincial dos Espiritanos que eu conheço, a Ordem bastante bem .Digo também que é sempre tempo de todos nos reconciliarmos e assumirmos o pecado da igreja quando digo todos, a igreja somos nós. Mas aos senhores bispos e padres a igreja exige muito mais, os senhores padres tem de deixar de ser patrões dos leigos, mas ajudar todos a crescer na Fé, e ensinarem os leigos a ler a igreja á luz do Evangelho e á vida concreta. È urgente formar os homens e mulheres que dirigem as paróquias, sejamos sérios uns com os outros só assim se criam verdadeiras comunidades de crentes. È urgente que todos saibamos viver com as diferenças para aprendermos uns com os outros, Aos Srs. Bispos e também alguns padres, devem ler um pouco S. Francisco de Assis.
Obrigado por esta mensagem é a primeira deste teor, que vejo publicada por um membro da Igreja. É fundamental iniciar um período de “Facta non verba” para evitarmos a criação de uma sociedade que não acredita em nada e tem medo de levar as suas crianças para perto de Padres… Coragem vão ser tempos de muitos desafios.