P. Adelino Ascenso *
1. Em ordem a celebrar o centenário da publicação da Carta Apostólica Maximum illud, do Papa Bento XV, o Papa Francisco declarou outubro de 2019 «Mês Missionário Extraordinário». A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), por sua vez, propôs a celebração de um Ano Missionário Extraordinário, com o título genérico Todos, Tudo e Sempre em Missão, tendo-se iniciado em outubro de 2018 e devendo prolongar-se até outubro de 2019, tempo durante o qual a atividade missionária estará subjacente «às iniciativas pastorais diocesanas e nacionais» (CEP, abril 2018). Tal proposta alarga horizontes de corresponsabilidade e de compromisso. Urge, porém, que avivemos a consciência de que o ponto de partida deverá radicar na necessidade de lavrarmos a terra antes de procedermos ao ato de semear, pois não poderemos negligenciar os terrenos que estão em pousio, sejam eles constituídos por buscadores desesperados, ateus resignados ou crentes desiludidos.
2. O ato de lavrar a terra pressupõe aquilo a que o Papa Francisco não se cansa de nos exortar: uma verdadeira saída de nós mesmos e da nossa autorreferencialidade. De facto, a vida é uma saída contínua, que implica movimento, abertura e encontro, muitas vezes no contexto de contornos surpreendentes e gélidos. Tal saída terá de ser audaz, convicta e convincente, baseada no paradigma da escuta e do testemunho. Sim, porque o mergulhar o arado em terrenos obscuros ou inóspitos exige o abandono de nós mesmos e a intimidade com aquele que está nas margens; requer que saiamos da segurança do caminho e nos equilibremos nas escarpas ameaçadoras do desconhecido; impele-nos a que corramos o risco do desassossego no encontro com o diferente e a que aceitemos o calafrio da sua provocação.
3. Este movimento de saída encerra em si mesmo uma antecipada atração. A Igreja não pode deixar de se sentir atraída pela periferia e de ser enviada para a periferia. É no ato de sujar as mãos e os pés na lama da existência que se entenderá as palavras de Henry Nowen: «A grande ilusão da orientação é pensar que um homem pode ser conduzido para fora do deserto por alguém que nunca lá esteve». A Igreja deixa de ser evangélica quando deixa de ser vulnerável, quando perde o seu estatuto de “periferia”. Há que reaprender, neste tempo em que toda a Igreja é chamada a um profundo discernimento, o Evangelho do silêncio, da contemplação e da fragilidade. Teremos de revestir-nos de coragem, esvaziando-nos para que nos possamos encher do divino.
4. São muitos os desafios que o Ano Missionário Extraordinário lança à Igreja. Mas o ponto de partida terá de ser o tomarmos consciência de que «somos uma missão nesta terra» (EG, 273). A missão – cerne da nossa identidade – deve ser encarada como estímulo e aventura, que nos leve a sair de nós mesmos, abrindo largas janelas que nos levem à genuína realização da própria existência. Não podemos deixar-nos intimidar por desertos tórridos, mares encrespados, bosques densos ou escarpas vertiginosas, pois «a ousadia e a coragem apostólica são constitutivas da missão» (GE, 131). Somos missão e, como tal, devemos gastar a nossa vida num regresso à essencialidade, rasgando sulcos de luz em terrenos abandonados ou temidos, com espírito aberto à novidade e àqueles que se encontram nas margens e nos terrenos em pousio, muitas vezes em busca de gestos perenes e incondicionais de sintonia.
* Presidente do IMAG (Institutos Missionários Ad Gentes. Publicação conjunta da MissãoPress