10 de junho, Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa. O Cardeal Tolentino começou o seu discurso em Dia de Portugal. Queria tomar notas e comecei a escrever. Depressa desisti, pois cada frase tinha de ser anotada. Decidi ouvir. Ouvir e meditar. Extraordinário. Depois, como sempre, há que pegar no texto e ler várias vezes, como acontece com o que o Cardeal Poeta e Biblista escreve. É um exercício que nos faz crescer por dentro, pois os poetas são assim.
Tolentino insiste em três pactos urgentes: o comunitário, o intergeracional e o ambiental.
Belo é o elogio a Camões que nos ‘deixou em herança a poesia’. Bela e profunda é a sua reflexão sobre a poesia: ‘um guia náutico perpétuo; um tratado de marinhagem para a experiência oceânica que fazemos da vida; uma cosmografia da alma’. Assim se compreende como ‘Camões desconfinou Portugal’ e como os Lusíadas são, ‘ao mesmo tempo, um livro que nos leva por mar até à Índia, mas que nos conduz por terra ainda mais longe: conduz-nos a nós próprios’.
E, claro, a crise provocada pela pandemia esteve no coração do discurso. D. Tolentino recorreu ao Canto VI dos Lusíadas para explicar que, ontem como hoje, os grandes sonhos, as grandes viagens da vida, só se concretizam após duras experiências de tempestade, depois de profundas crises. Mas há algo decisivo neste caminho: ‘o importante a salvaguardar é que, como comunidade, nos encontremos unidos em torno à actualização dos valores humanos essenciais e capazes de lutar por eles’.
Amar um país implica praticar a compaixão como ‘exercício efectivo da fraternidade’. Vitimados por esta pandemia (uma ‘tempestade global’), devemos saber, como sociedade, estando no mesmo barco, para onde queremos ir. Precisamos de reabilitar o pacto comunitário, pois ‘a raiz da civilização é a comunidade’, como tão bem explica a parábola do fémur cicatrizado, primeiro sinal de civilização.
A primeira missão de uma comunidade é ‘cuidar da vida’, de todas as vidas, do nascer ao pôr do sol da vida, colocando sempre a pessoa humano no centro da história, ‘ultrapassando a cultura da indiferença e do descarte’. O Cardeal madeirense apelou à solidariedade, referindo dados belos como ‘a regularização dos imigrantes com pedidos de autorização de residência pendentes no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. E conclui: ‘sem compaixão e fraternidade fortalecem-se apenas os muros e aliena-se a possibilidade de lançar raízes’.
O pacto intergeracional é outra urgência, exigindo uma reflexão e tomada de medidas sobre o abandono a que são votados muitos idosos e a geração mais jovem, a quem se lhes rouba o futuro, não lhes dando vez nem voz. Para D. Tolentino, ‘a vida é um valor sem variações’. Por isso é necessário ‘aprofundar a contribuição dos seus idosos, ajuda-los a viver e a assumir-se como mediadores de vida para as novas gerações’, como foi a avó materna do Cardeal para ele, irmãos e primos. E há que olhar também para os jovens adultos (menos de 35 anos), ‘uma geração que, praticamente numa década, vê abater-se sobre as suas aspirações, uma segunda crise económica grave’.
O Papa Francisco também foi chamado ao Mosteiro de Jerónimos, por causa da urgência de um novo pacto ambiental. D. Tolentino chamou à encíclica ‘Laudato Si’ ‘um dos textos centrais do século XXI’ e lembrou a necessidade de uma ‘ecologia integral, onde o presente e o futuro da nossa humanidade se pense a par do presente e do futuro da grande casa comum’. De facto, tudo está interligado, precisamos de ‘cuidadores sensatos, praticando uma ética da criação, que tenha expressão jurídica efectiva nos tratados transnacionais, mas também nos estilos de vida, nas escolhas e nas expressões mais domésticas do nosso quotidiano’.
E termina com uma afirmação que rasga caminhos de futuro. Estamos em viagem e ‘uma grande viagem é como uma grande amor’. É tempo de desconfinar, levantarmos as âncoras e de nos fazermos ao largo! São estas as exigências do exercício de uma cidadania culta e responsável.