Era uma vez no ano 60. O mar estava encapelado junto à Ilha de Malta – que, em língua fenícia, quer dizer ‘porto seguro’ – e a embarcação em que viajava S. Paulo, a caminho de Roma, naufragou. Num esforço de chegar a terra firme, muitos dos viajantes conseguiram salvar-se, sendo acolhidos pelos habitantes desta Ilha plantada no meio do Mediterrâneo, a sul do continente europeu. O Papa Francisco decidiu visitar esta terra e este povo, atingindo dois objetivos maiores: fazer uma peregrinação às fontes do anúncio do Evangelho e abraçar os milhares de imigrantes africanos que ali chegam e são acolhidos.
O tema da viagem é tirado da passagem bíblica em que S. Paulo confessa: ‘Eles nos trataram com rara humanidade’. Referia-se, claro, ao acolhimento que lhe foi feito pelos habitantes da Ilha, após naufrágio.
Esta Igreja multisecular fora já visitada por João Paulo II e Bento XVI, noutros contextos e com outros objetivos. Em plena guerra na Ucrânia, após invasão das tropas russas, o Papa Francisco teve intervenções muito frontais, apontando a dedo a muitas situações desumanas, elogiando o que de bom se faz e rasgando novos caminhos para um futuro de justiça, paz e encontro de povos e culturas.
O Papa chegou, na manhã de sábado, a esta Ilha que tem menos de 500 mil habitantes, sendo 85% católicos. Foi recebido em festa por autoridades e povo. As suas primeiras palavras foram para os responsáveis políticos da Ilha e diplomatas. Disse que esta Ilha é o ‘coração do Mediterrâneo’ e o seu povo, no Hino, canta sempre a unidade e a paz. Lembrou que uma sociedade de progresso assenta nos pilares da honestidade, da justiça, do sentido do dever e da transparência, exigindo ainda a equidade social, o cuidado da casa comum, a protecção da vida, o acolhimento ao estrangeiro e o combate sem tréguas a todas as formas de corrupção e ao consumismo desenfreado. Elogiou a coragem de um povo que tem acolhido vagas de imigrantes que fogem de injustiças gritantes, conflitos violentos ou alterações climáticas desastrosas. Criticou as guerras, geradas pela ganância de alguns senhores que, para além das tragédias que provocam, impedem o combate de grandes males, como a fome no mundo e a luta pelas desigualdades. Terminou com a convicção de que não podemos dar nunca lugar à globalização da indiferença.
Após viagem de barco, chegou à Ilha de Gozo, onde presidiu a um momento de Oração no Santuário Nacional de Ta’ Pinu, famoso pela história da recitação das ‘Três-Avé Marias’, uma por cada dia que Cristo esteve no sepulcro. Depois houve um tempo forte de testemunhos de quem vive a sua fé, mesmo na dor, com o apoio da família. O Papa, na sua breve intervenção, falou da arte do acolhimento. A esta Ilha de Malta chegam tantos imigrantes crucificados pela dor, miséria, pobreza e violência. São pessoas naufragadas pelas tempestades da vida que precisam de ser aquecidas pelas fogueiras de ternura do povo desta Ilha pequena, mas com coração grande.
De regresso a Malta, o domingo começou com a visita à Gruta de S. Paulo, ao que se seguiu a celebração da Missa no Largo ‘dei Granai’. O Papa atacou todas as formas de hipocrisia, falando do Deus que deixa sempre aberta uma porta para a libertação e a salvação. Temos que ser testemunhas incansáveis da misericórdia, pois também Deus perdoa tudo.
O momento mais esperado e mais simbólico desta visita foi o encontro no Centro para os Migrantes João XXIII Paece Lab. Foram emocionantes os testemunhos de Daniel e Slimani, dois dos imigrantes acolhidos neste ‘laboratório de paz’. Daniel, após traumática travessia do deserto, acabou por tentar passar o mediterrâneo seis vezes. Depois de longo calvário, chegou a Malta. Slimani fez via-sacra semelhante e lembrou que só realizou esta penosa viagem para encontrar um lugar seguro e na esperança de construir um futuro melhor.
O Papa Francisco, na sua intervenção, pediu que Malta continuasse a ser porto seguro para quantos chegam às costas destas Ilhas, com histórias iguais aos que fogem da guerra na Ucrânia e noutras paragens do mundo. Só com acolhimento e humanidade conseguiremos evitar o naufrágio que ameaça o navio da nossa civilização. O futuro da família humana está no caminho da fraternidade, da amizade social e da cultura do encontro. Os imigrantes não são números, mas pessoas de carne e osso, com direitos espezinhados, muitas vezes com a cumplicidade das autoridades competentes.
Ficam a ecoar as palavras do P. Dionisus, o velho franciscano de 91 anos, director deste Centro: ‘o Papa Francisco é a única voz do mundo que fala pelos pobres. Precisamos que outras nações escutem as suas palavras’.