São hoje poucas as passagens de nível sem guarda. Também nas estações não se podem atravessar as linhas. Noutros tempos, eram frequentes as placas que diziam: ‘Atenção. Um comboio pode esconder outro comboio!’. E a verdade que algumas vidas foram ceifadas por se deixar passar o comboio e atravessar imediatamente a linha, sendo essas pessoas colhidas por outro que circulava em sentido contrário. Ora, isso está a acontecer agora mesmo no mundo que é o nosso.
Todos os olhos estão focados no coronavírus. Parece não haver vida para além deste monstro microscópico. Estamos num combate muito duro com um inimigo que não vemos, conhecemos ainda pouco e faltam-nos armas à altura da sua braveza. Os hospitais esqueceram outros doentes e doenças, a economia parou (ou quase), o ritmo das pessoas foi alterado, os crentes pedem contas a Deus sobre o que se passa… E o resto da vida?
O drama é que tudo o que de mal havia antes da chegada do corona, continua a existir. E o pior é que, sem os holofotes da comunicação social, à porta fechada, os problemas ganham proporções maiores, com danos mais sérios e consequências incontroláveis. Por isso, há que combater este vírus, mas não esquecer que a vida continua…
As guerras que matam e destroem a Síria e outros cantos do mundo, continuam a fazer as suas vítimas, sobretudo entre as populações mais pobres e indefesas. Além dos combates e da violência descontrolada, há a falta da solidariedade internacional, hoje toda virada para o Covid19. Por mais que gritem estes pobres, ninguém consegue falar mais alto que as estatísticas diárias sobre mortos e infectados na Itália, na Espanha, na França e nos EUA. Outros países como Portugal, Angola, Irão ou Tanzânia passarão despercebidos dos grandes media, pois contam pouco para o mundo mais rico.
Mas nem só de guerra se alimentam os maldosos deste mundo. Temos – embora com alguma ligação – a tragédia humanitária dos refugiados e migrantes. Até há três meses, eles enchiam noticiários e páginas de jornais, para além de preocuparem parlamentos e governos na Europa e EUA. Hoje em dia, não há espaço para eles, mas a verdade é que nunca este drama foi tão grande, sobretudo ali naquela fronteira quente entre a Turquia e a Grécia, numa das portas mais trancadas da Europa. Talvez voltem às luzes da ribalta se deflagrar o vírus naquela multidão e houver risco de contaminação global. Até lá, serão cidadãos anónimos de um mundo para quem eles não contam, pois apenas parecem ser problema, sem trazer grandes ganhos para quem já tem muito.
E os gafanhotos? Tive a possibilidade de ver os campos arrasados pela praga que destruiu uma parte da Ilha de Santiago em Cabo Verde, sobretudo nas áreas da Cidade Velha e Milho Branco. Que desolação. E as narrativas eram de arrepiar. Pelo que vimos antes do Covid tomar conta de tudo e de todos, essa praga saída do deserto, está a destruir parte da costa oriental de África, caminhando a voos largos (aos milhões) para a Ásia, semeando fome e desespero, ante a apatia da comunidade internacional.
Com isto não quero dizer que o coronavírus não mereça uma atenção especial. Sim, merece, e estamos todos de armas na mão para este combate ser vitorioso. Estamos em casa ou estamos nas linhas da frente. Estamos a rezar e tentamos ser responsáveis. Mas, mesmo neste combate, não nos esqueçamos dos mais frágeis: os doentes, os sós e os pobres. O apoio aos sem abrigo em certas cidades europeias está a falhar. Há muitas pessoas a correr risco sério de despedimento. Há muita gente que vivia do seu trabalho informal do dia a dia e que, neste contexto, passa fome. Há gente que tem outras doenças que não a infecção provocada pelo corona…
Enfim, precisamos de um olhar do tamanho do mundo. Não nos podemos focar apenas naquilo que nos ocupa mais hoje. É urgente o empenho na arte do cuidado, pensando no bem comum e estando sempre abertos à partilha.