Já não são muitos os gestos que nos visitam em ritmo anual na liturgia, cada vez mais despida, mais abreviada e menos vivida. A razão fugiu do mistério, a pressa fugiu da contemplação, a agitação fugiu do silêncio. Vivemos em fuga. Mas as cinzas resistem e devolvem-nos a necessidade de uma vez por ano incluirmos na escrita da vida o ponto de inquietação. Cada ano somos convocados, naquela quarta-feira, para olharmos as cinzas como quem se olha ao espelho. Isto somos. Como lembra o Padre António Vieira no Sermão de Quarta-feira de Cinzas, “esta nossa chamada vida não é mais que um círculo que fazemos de pó a pó: do pó que fomos ao pó que havemos de ser”.
Não é uma menoridade, é um privilégio. Nós, em viagem entre cinzas, fomos escolhidos para mergulhar no Mistério, e em silêncio contemplarmos Aquele que das cinzas nos faz Vida. As cinzas que teimosamente nos visitam cada ano no início da Quaresma lembram-nos que somos pó, em pó nos tornamos, mas isso não seremos. A cinza, que de tão baixo nos olha, para o alto nos aponta. Ela prega-nos, portanto. Recomenda António Vieira: “Esta é a melhor devoção e mais útil penitência, e a mais agradável a Deus, que podeis fazer nesta quaresma. Tomar uma hora cada dia, em que só por só com Deus e connosco cuidemos na nossa morte e na nossa vida. E porque espero da vossa piedade e do vosso juízo que aceitareis este bom conselho, quero acabar deixando-vos quatro pontos de consideração para os quatro quartos desta hora. Primeiro: quanto tenho vivido? Segundo: como vivi? Terceiro: quanto posso viver? Quarto: como é bem que viva?”
Uma vez por ano peregrinamos até àquela quarta-feira para reconhecer que somos pó mas deste pó Deus nos criou à sua imagem. Bendito seja a cinza e o Senhor que a criou e dela nos salvou.
A razão fugiu do mistério, a pressa fugiu da contemplação, a agitação fugiu do silêncio. Vivemos em fuga. Mas as cinzas resistem e devolvem-nos a necessidade de uma vez por ano incluirmos na escrita da vida o ponto de inquietação.
“Crónica” é uma rubrica mensal do jornal “Ação Missionária“, pelo P. Aristides Neiva