2º Domingo da Quaresma
Perante a espantosa obediência de Abraão à ‘terrível’ ordem de Deus, descrita com aparentes requintes de malvadez, para Lhe sacrificar o seu único filho – “a quem tanto amas”, diz o texto -, é inevitável que nos coloquemos a pergunta: até onde estou eu disposto a ir na obediência a Deus? Com efeito, a maior parte das vezes e perante situações complicadas da vida (doenças, desgraças, fracassos, perdas irreparáveis, injustiças, etc.) somos levados a dizer: “mas eu não mereço isto!”; “que mal fiz eu a Deus?…”; “JÁ NÃO POSSO MAIS!”, que são uma forma de reclamar da (ir)razoabilidade daquilo que nos está acontecendo.
Mas, por outro lado e à semelhança dos contemporâneos de Abraão, que, como diz o Salmo 106, “sacrificaram seus filhos e suas filhas aos demónios e derramaram sangue inocente, o sangue de seus filhos e de suas filhas que sacrificaram aos ídolos de Canaã” (v 37-38), também nós vamos sacrificando muita coisa e muitos valores no altar de outros ídolos, arrastados, como diz o papa Francisco, pelos “encantadores de serpentes” e “charlatães” que pululam nos nossos dias.
Mas a narrativa escutada não termina com esta exigência ‘impiedosa’ de Deus. Pelo contrário, uma vez testada a obediência de Abraão, é o mesmo Deus que faz ouvir a sua voz imperiosa: “não levantes a mão contra o menino, não lhe faças mal algum”! E, sob juramento, lhe assegura: “já que obedeceste à minha voz, na tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra”!
De Paulo, diz-nos a segunda leitura que era com uma convicção semelhante à de Abraão que ele encarava os obstáculos e dificuldades que ia enfrentando: “Se Deus está por nós, quem estará contra nós? E quem nos condenará? Cristo Jesus, que morreu e, mais ainda, que ressuscitou e que está à direita de Deus e intercede por nós?”. E ele próprio responde: nada, nem ninguém “nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor”!
Certamente que já todos encontramos pessoas de quem admiramos a coragem, a paz e a serenidade com que enfrentam situações bem complicadas e de cuja presença regressamos não só admirados, mas também confortados e estimulados a enfrentar os nossos próprios problemas e desafios! Donde lhes vem esta força e coragem? Da sua fé e da confiança em Deus, que nada, nem ninguém pode abalar; da certeza de que nenhuma das ‘desfigurações’ com que nos confrontamos ao longo da vida destronará a Transfiguração operada em Cristo, presenciada e testemunhada por Pedro, Tiago e João: “Não é baseando-nos em fábulas imaginadas que vos temos feito conhecer o poder e a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas por termos visto a sua majestade com os nossos próprios olhos” (2Pedro 1,15-16). No entanto, convenhamos, custa-nos compreender e, ainda mais, aceitar que as desfigurações sejam o único caminho para a verdadeira transfiguração!
Aceitemos que, nesta Quaresma, também Deus nos ponha à prova, pois quem sacrificou o Seu Filho por nós foi Ele e nos convida a escutá-l’O para O seguirmos, não apenas no alto da montanha do bem-estar, mas também na planície deste “vale de lágrimas” em que decorre grande parte das nossas vidas, pois só Ele pode transformar em transfiguração as nossas des-figurações!