No próximo dia 14 de julho, quatro jovens espiritanos farão a sua profissão religiosa no Vietname: três vietnamitas e um indiano. Eu tive a graça de os poder acompanhar numa semana de retiro, nesta reta final do seu noviciado.
Poder voltar à Ásia é, por si só, uma experiência entusiasmante. Poder testemunhar de perto o crescimento da missão, junto destes jovens, partilhando das suas alegrias e dificuldades, torna a experiência ainda mais enriquecedora. Claro que soube a pouco. Ainda não me tinha completamente ajustado às sete horas de diferença horária (sem falar no clima e tudo o resto…) e já era hora de regressar. Mas valeu a pena!
Curiosamente, recordo que nunca estive mais de duas ou três semanas seguidas no Vietname. No entanto, este é o país que, seguramente, mais páginas me gastou no passaporte. Sem nunca ter lá vivido ou trabalhado, sinto uma grande cumplicidade com esta missão. Mais do que carimbos no passaporte, aquilo que guardo são as marcas do Espírito que se vão desenhando nas páginas brancas da nossa missão no Oriente.
Quando parti em missão para Taiwan, há 15 anos atrás, éramos um pequeno grupo missionário a dar os primeiros passos. Poucos anos depois, passamos a caminhar de mãos dadas com o novo projeto do Vietname. Depois, foi a Índia. Hoje, aquele pequeno grupo é agora uma Província Espiritana que engloba Taiwan (e China), Vietname e Índia. Sob muitos aspetos, continua a ser um grupo pequenino. Mas é verdade que este grupo que “abraça” bem mais de um terço de toda a população mundial!
Comunidade do Noviciado, com três noviços vietnamitas e um indiano, o P. Frédéric Rossignol (Mestre de Noviços, à esquerda), e o P. Duc Luong (à direita).
O P. Victor Silva (à esquerda) numa atividade de fim-de-semana com os jovens espiritanos em formação
Primeiros passos
Aterrei em Saigão, pela primeira vez, há 12 anos. Encontrei uma cidade sempre a palpitar. Muita juventude, muito calor humano e atmosférico. Dia e noite, as motorizadas nunca param. Atravessar a rua apresentava-se como um desafio mais complicado do que atravessar o Mar da China Meridional para chegar àquele país.
Naquele dia, estava longe de sentir que pisava um terreno firme. Em termos espiritanos, experimentávamos um grande vazio e silêncio. Há poucos meses, tinha falecido ali, num dos parques daquela cidade cheia de vida, o nosso querido colega P. Brian Fulton. Vivia ali desde 2002, de forma muito discreta.
Dado o contexto político, achávamos que tínhamos mesmo de ser discretos. Alguns emails eram trocados com linguagem simbólica. Pareciam páginas do livro do Apocalipse.
O P. Brian trabalhava com leprosos e pobres, e fazia o seu melhor para aprender aquela língua que soa bem mais difícil que o Mandarim. Com ele, parecia-nos que tinha morrido também o nosso sonho missionário para aquele país.
Aos poucos, fomos descobrindo que, sob aquele aparente vazio e silêncio, o Espírito estava a realizar algo verdadeiramente fecundo. Logo desde as celebrações fúnebres do P. Brian, em Saigão, começámos a perceber que a sua presença não tinha sido tão discreta quanto isso. Ou melhor, tinha sido tão discreta como o sal: praticamente não se vê, mas não pode faltar, porque se sente.
Naquele dia ouvimos, em alto e bom som, que presenças como a do P. Brian não podiam faltar ali. E os nossos olhos, mesmo embaciados pelas lágrimas, não podiam deixar de ver sinais de esperança.
E, um ano depois, tínhamos já uma comunidade de três espiritanos no Vietname. Mas já lá vamos… até porque foram outros os motivos que me levaram ao Vietname naquela primeira vez.
Imagem de Nossa Senhora em frente da Basílica de Notre-Dame de Saigão
Em Hué, com os mais pobres
Depois de uma noite em Saigão, segui para Hué, no centro do país. Desde 2001, temos um projeto de apadrinhamento de crianças pobres, para que estas possam continuar os seus estudos e construir a esperança de transformar o ciclo de pobreza em que vivem as suas famílias.
Depois de todo o ruído e movimento de Saigão, experimentei em Hué uma grande paz, mas, ao mesmo tempo, uma grande desolação por ver tantos jovens vagueando sem oportunidade numa cidade que já tinha sido capital do império. Desolador foi também poder ver, a olho nu, um número anormal de pessoas invisuais ou com outras deficiências de nascença, ou campos estéreis, fruto do uso de armas químicas usadas décadas atrás na guerra do Vietname, numa altura em que forças militares procuravam, à lupa e sem resultados claros, armas de destruição maciça no Iraque.
Para mim, foi uma graça enorme poder começar a conhecer um país, não a partir dos “postais turísticos”, mas a partir do encontro com os mais pobres. Durante uma semana inteira, fizemos quilómetros de motorizada, por vezes sob chuvas tropicais que transformam as estradas em rios lamacentos, desde Hué até às montanhas junto da fronteira com o Laos, onde vivem povos de etnias minoritárias, completamente abandonadas pelas autoridades e serviços públicos. Passámos dias inteiros de canoa, através do rio Perfume, saltando de barco em barco… ou melhor, de casa em casa, pois, para muitas famílias, o rio é o único “chão” que possuem. Conseguimos visitar quase todas as crianças e famílias apoiadas pelo nosso projeto e muitos outros candidatos. Foi gratificante perceber o apoio, no terreno, de religiosos e religiosas, leigos e leigas que dão aquilo que nós ainda não podemos: uma presença próxima e continuada.
Para mim, foi uma graça enorme poder começar a conhecer um país, não a partir dos “postais turísticos”, mas a partir do encontro com os mais pobres.
O P. Victor visita famílias pobres que vivem em barcos, em Hué
A primeira comunidade
Passado pouco tempo tínhamos já formada uma equipa de três espiritanos que, em 2007, partiu para o Vietname: O P. Pat Palmer, irlandês, com largos anos de missão em África e na Europa e com experiência na formação de espiritanos e administração, o P. Frédéric Rossignol, belga, que fez o seu noviciado e formação teológica em Portugal, e o P. Trinh Lee, americano, de origem vietnamita. Apesar de ter nascido no Vietname, como os outros refugiados, não tem cidadania vietnamita. É um cidadão estrangeiro como os outros. No entanto, conhece a língua e a cultura e, portanto, é uma pedra fundamental na equipa.
Apesar de muito minoritária, a Igreja no Vietname é vibrante, e com uma fé frequentemente provada pelo fogo. Um dos objetivos da nossa presença no Vietname é muito claro: num continente onde o Evangelho é tão pouco conhecido, esta Igreja pode ser sal e luz para além das suas fronteiras.
O P. Frédéric Rossignol, espiritano belga a trabalhar no Vietname, fala-nos um pouco da missão dos espiritanos naquele país.
Como devem imaginar, começar do nada, com liberdades muito limitadas e sem qualquer reconhecimento legal, numa sociedade com estruturas muito próprias e uma língua complicada para aprender, não é nada fácil! Mas esta precariedade não impediu aquela pequena comunidade de abrir as suas portas aos jovens que querem partilhar da nossa vida missionária espiritana. E assim começou uma aventura que não parou de crescer.
E, como qualquer crescimento, tem as suas alegrias e dores. Quantas vezes imaginei o que teria sido a aventura do nosso primeiro fundador, Poullart des Places, quando via os nossos confrades e jovens no Vietname com a esteira às costas, mudando de casa, consoante o que era possível alugar ou era cedido gratuitamente por algum católico generoso, com condições mínimas para uma casa de formação, ou procurando organizar-se com tão limitados recursos humanos ou materiais! Quando se inicia um projeto de formação, cada ano há uma etapa nova a projetar e a gerir. Pelo meio, foi possível adquirir um terreno, a duas horas de distância de Saigão, e aí construir uma casa que agora funciona como noviciado e centro de espiritualidade e formação; foi possível construir, em Manila, uma casa para formação teológica dos espiritanos na Ásia; foi possível encontrar um terreno, nas periferias de Saigão, onde sonhamos construir uma casa própria para os espiritanos e jovens em formação.
Hoje, a comunidade espiritana no Vietname conta com seis membros: aos três da equipa inicial juntaram-se outros três, todos cidadãos americanos de origem vietnamita. Isto sem contar os 14 jovens professos de origem vietnamita que estão espalhados pelo mundo em estágio missionário, ou a fazer os seus estudos em Manila.
Vigília do Pentecostes
Formação para a missão
Nos primeiros anos de formação, há um grande investimento na aprendizagem da língua inglesa, o que é tão difícil para eles como para nós a aprendizagem do Vietnamita, com a agravante de eles viverem num contexto onde não se fala inglês. Esse estudo é fundamental seja para a vida missionária em contexto internacional, seja para o estudo de teologia que é feito em Manila, nas Filipinas. É essa a grande ocupação dos jovens nos dois primeiros anos de formação – o aspirantado – em que os jovens vivem em comunidade e se vão familiarizando com o carisma espiritano e continuando o discernimento vocacional. Nos dois anos seguintes – o postulantado – os jovens fazem os estudos de filosofia, em vietnamita, ao mesmo tempo que continuam o investimento na língua inglesa e se envolvem mais em compromissos pastorais e sociais, sobretudo durante o período de férias escolares. Segue-se um ano de noviciado, feito no Vietname, em língua inglesa – até porque, em geral, é um noviciado internacional que integra noviços originários de outros países da região.
Depois do noviciado, os jovens espiritanos são enviados a fazer estágio missionário, de dois anos, fora do seu país, em África, na Europa ou na Ásia, sobretudo em países anglófonos. É uma etapa particularmente decisiva. Para quem cresceu num ambiente relativamente fechado ao mundo exterior, partir em missão para fora representa um enorme desafio. Pude sentir essa grande espectativa junto dos noviços que acompanhei e que vão partir, já este verão, um para cada continente, para um mundo tão novo e tão diferente do seu. Tive a alegria de chegar ao Vietname no mesmo dia em que dois jovens espiritanos regressavam do seu estágio na Tanzânia. Um desses jovens conheci-o há quase dez anos, em Taiwan, onde ele trabalhava numa fábrica, na área da minha missão. Foi aí que ele conheceu os espiritanos. Foi uma enorme alegria poder reencontrá-lo, agora como meu irmão espiritano, sentir o seu entusiasmo e escutar as alegrias e dificuldades desta sua grande experiência missionária. Depois, a caminhada continua em Manila, onde espiritanos estudam teologia ou fazem outra formação específica. No próximo ano, teremos quase 50 jovens vietnamitas em formação, doze dos quais em estágio missionário. No próximo ano teremos as primeiras profissões perpétuas e ordenações.
Ao contemplar as grandes acácias rubras que refrescam de sombra os claustros daquela estrutura simples e acolhedora que é o nosso noviciado, frequentemente me lembrava do tempo em que aquele terreno parecia pouco mais do que um deserto. Mas, pessoas como o P. Brian viram mais do que um deserto. E não era uma miragem! Hoje, naquela sombra, sentimo-nos abraçados por um projeto que definitivamente nos ultrapassa. É maior do que nós… mas que passa pelas nossas mãos, ainda que seja na forma de algo insignificante como um grão de mostarda, ou como um processo que a gente nem sabe muito bem como é que acontece, ou como um grão que tem de ser lançado e, ainda por cima, morrer.
Estagiários vietnamitas na Gâmbia, com outros jovens espiritanos
Ao contemplar as grandes acácias rubras que refrescam de sombra os claustros daquela estrutura simples e acolhedora que é o nosso noviciado, frequentemente me lembrava do tempo em que aquele terreno parecia pouco mais do que um deserto. Hoje, naquela sombra, sentimo-nos abraçados por um projeto que definitivamente nos ultrapassa…
Dia de Passeio, depois do retiro.
Passeio comunitário com os jovens espiritanos em formação no Vietname.