“Não pode suceder outra vez (…) que a emoção de momentos como este seja rapidamente esquecida e que a reflexão sobre as causas estruturais que levam a que os incêndios provoquem em Portugal danos até maiores do que em países com condições climatéricas idênticas também não se prolongue para além destes momentos e não se traduza urgentemente em ações concretas.”
Uma semana depois dos trágicos acontecimentos de 17 de junho de 2017, a Comissão Nacional Justiça e Paz, as Comissões Diocesanas Justiça e Paz e a Comissão Justiça e Paz dos Institutos Religiosos aprovaram uma nota de imprensa, toda ela, muito lúcida e assertiva relativamente ao problema cíclico dos incêndios florestais. Cito apenas algo que me parece ser chave neste assunto: “Não pode suceder outra vez (…) que a emoção de momentos como este seja rapidamente esquecida e que a reflexão sobre as causas estruturais que levam a que os incêndios provoquem em Portugal danos até maiores do que em países com condições climatéricas idênticas também não se prolongue para além destes momentos e não se traduza urgentemente em ações concretas.”
É certo que temos um território interior despovoado e pouco ordenado, o que tem consequências não apenas na falta de limpeza e proximidade entre “matos” e habitações, como também na vulnerabilidade das populações idosas e isoladas e na própria capacidade de resposta face à emergência. Há que resolver a falta de cadastro, promover o emparcelamento, profissionalizar ainda mais os corpos de bombeiros, melhorar as comunicações e a coordenação das operações… Tudo isto é verdade mas continua a existir um problema de fundo geralmente pouco salientado.
A análise dos dados do Portal PORDATA (www.pordata.pt), dados públicos e oficiais, ajuda a demonstrar esse problema. Não adianta comparar a situação portuguesa com a de países nórdicos, por exemplo, porque o próprio contexto de perigosidade ao incêndio é muito distinto. Mas podemos comparar-nos com outros países de clima parcialmente mediterrâneo, como é o nosso: Espanha, França, Itália e Grécia. Entre 2006 e 2015 (um período de 10 anos), e sendo Portugal o menor desta lista em termos de superfície, apenas a Espanha tem uma média anual de área ardida superior (100 mil hectares em Espanha para 76 mil em Portugal), e ainda assim, desproporcionada. Mas é no número de incêndios (ou seja, de ignições) que os dados são reveladores: média anual de 18923 incêndios em Portugal, 13255 em Espanha, 6113 em Itália, 3749 em França e 1213 na Grécia. Como explicar isto? Como reduzir o número de incêndios? Segundo um relatório do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), analisando os incêndios entre 2003 e 2013, verificou-se que daqueles nos quais foi possível apurar uma causa – e foi a maioria – apenas 2% apresentava causas naturais. Os restantes resultaram de intenção e ação negligente. Estes dados transportam o problema dos incêndios para outros planos: social, económico (?) e territorial.
Enquanto não assumirmos e lidarmos com as causas das ignições, muito inglório será todo e qualquer esforço de combate à propagação do fogo. Não que não valha a pena fazê-lo. Que fique bem claro: salvar vidas e bens deverá estar sempre na linha da frente da atuação do País. O Estado, enquanto executante das ações que respondem às expetativas e preocupações da sociedade, deve fazê-lo mas deve também assumir um entendimento mais amplo do problema.
Pegando no título deste texto, sim, os incêndios são claramente uma matéria em que existe injustiça e falta de paz. Eles são uma “guerra” anunciada, sazonalmente, que vitima injustamente inocentes. Uma das respostas, a caridade/solidariedade, sejam elas espontâneas ou organizadas, são construtoras de paz e repositoras de justiça face às situações de injustiça criadas. A injustiça está patente em várias dimensões: naqueles que, cuidando das suas terras (pomares, pinhais, etc.) perdem tudo; naqueles que encontrando-se em descanso, de passagem, etc., se vêm confrontados com o perigo e as perdas (por vezes irreparáveis) causadas pela negligência ou intenção de outros; na incapacidade das pessoas de menor poder económico de contratar seguros que as defendam; no aproveitamento económico que algumas empresas fazem com o combate e a gestão do material ardido…
Há a ter ainda em conta o dever (e direito) de exigência. Quando nos deparamos com uma situação injusta ou incorreta e não atuamos no sentido de a reparar – diretamente por nós ou junto de quem tem essa capacidade – estamos de certo modo a ser cúmplices da continuidade dessa situação. São interpeladoras as palavras de Jesus no Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus; Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus;” (Mt 5, 9-10).
Pedro Pinto Santos