Por estes dias dei por mim a recuar 30 anos e dois continentes para lembrar um encontro que me ficou no coração. Corriam as lonjuras de 1988, estava há pouco tempo a realizar o estágio na Amazónia quando fui enviado até à paróquia da Foz do Jutaí para um trabalho no âmbito da Pastoral Juvenil. Dom Joaquim de Lange, missionário holandês, chegara à Amazónia em 1946. Fora ordenado Bispo em 1952 e desenvolveu um notável trabalho de evangelização e organização na Prelazia de Tefé, com destaque para a aposta na formação de leigos e no lançamento do Movimento de Educação de Base. Participou em todas as sessões do Concílio Vaticano II. Quando resignou e entregou o comando da Prelazia ao seu sucessor, pediu para ir como simples pároco para a remota povoação da Foz do Jutaí, então sem nenhum sacerdote residente.
Foi, pois, este velho missionário, então com 82 anos, com notórias dificuldades de visão e que morava sozinho, que me recebeu na modesta residência ao lado da igreja. Sentamo-nos e ele retirou uma garrafa meio vazia de um armário e dois copos, para brindarmos à minha chegada. Quando provei o primeiro gole senti a revolta de todo o meu corpo. O vinho estava azedo que sei lá. Como bom minhoto, obriguei o palavrão que me vinha a sair da boca a ir para as goelas com o vinho azedo. Passado o primeiro susto, percebi que o bom Bispo devia ter aquela meia garrafa guardada há muito tempo. Ou seja, há muito que ele não convidava alguém para beber um copo. Senti-me, pois, privilegiado pelo gesto. Durante a hora seguinte, enquanto o meu coração agradecia e o meu estômago protestava, deu-me conselhos e falou do futuro da Igreja naquela região. Impressionou-me aquela simplicidade de um bispo emérito desempenhando a missão de um simples pároco no meio da selva. Perdoei-lhe o mau gosto no vinho pela sabedoria nas palavras.
No início da sua vida missionária, ele tinha estado alguns anos em Angola. Talvez aí tenha escutado o provérbio: “Mu kanu dya mwadya-kimi mubola maju, kimubolwê maka”. Para os que não perceberam: “Na boca de um velho há dentes podres, mas os seus conselhos não são podres”.
Impressionou-me aquela simplicidade de um bispo emérito desempenhando a missão de um simples pároco no meio da selva. Perdoei-lhe o mau gosto no vinho pela sabedoria nas palavras.
“Crónica” é uma rubrica mensal do jornal “Ação Missionária“, pelo P. Aristides Neiva