A Ana Mansoa tem uma já longa caminhada no seio da Família Espiritana. Aceitou agora o grande desafio de dirigir o Centro Padre Alves Correia, um dos rostos mais emblemáticos do compromisso espiritano com os mais pobres e excluídos.
Ana Mansoa
Quando a Direção Social do Centro Padre Alves Correia (CEPAC) me lançou o desafio de assumir a direção executiva da instituição desencadeou-se, sem dúvida, um dos momentos de discernimento mais importantes e mais difíceis da minha vida. Uma resposta positiva implicaria uma reorganização da minha vida, com implicações na dinâmica pessoal e familiar, e significaria uma mudança radical de rumo profissional. Uma resposta negativa permitir-me-ia fechar os olhos a uma realidade social que faz parte da minha identidade e do meu código genético: a realidade dos imigrantes e dos excluídos da sociedade e implicaria fechar os ouvidos ao apelo do Espírito Santo de colocar a minha vida ao serviço dos mais pobres.
Talvez deva, por isso, reformular o que disse inicialmente, e dizer antes que foi a decisão mais simples da minha vida, porque na verdade já estava expressa mesmo antes de eu tomar consciência.
O país que apregoa que “precisa desesperadamente de imigrantes” é o mesmo que lhes diz que não são bem-vindos e os atira para a miséria, para a marginalidade e para o vazio.
O desafio que me foi colocado foi o de conduzir diariamente uma equipa de profissionais altamente qualificados e orientados para o bem comum, motivados a contribuir para a redução do risco de exclusão social de imigrantes, refugiados e de todos os que vivem à margem da sociedade. Uma resposta efetiva e estruturada prestada diariamente a mais de 400 agregados familiares, que se baseia em instrumentos e metodologias de desenvolvimento de projetos de intervenção social. Uma resposta que enfrenta desafios diários, numa sociedade cada vez menos inclusiva, cada vez mais sectária, num tempo em que interesses económicos e políticos se sobrepõem ao valor da pessoa humana. Uma instituição que abre os braços àqueles que ninguém quer ver; que lhes tem que dizer que o país que apregoa que “precisa desesperadamente de imigrantes” é o mesmo que lhes diz que não são bem-vindos e os atira para a miséria, para a marginalidade e para o vazio.
Quando decidi aceitar comandar este barco ressoou em mim a história da minha família, e tomei pela primeira vez consciência de que, se não tivesse sido dada aos meus pais a oportunidade de desejarem uma vida melhor, e se alguém não lhes tivesse estendido a mão, a minha história teria sido muito diferente.
O meu pai, guineense, veio para Portugal enquanto jovem porque teve a ousadia de sonhar com uma vida digna, estudar e construir família num país longe da guerra, da miséria e da corrupção. Conseguiu fugir, pelo menos, aos dois primeiros. Enfrentou, e ainda hoje enfrenta, o estigma e preconceito da cor da pele; a tristeza de saber que é tratado de uma forma totalmente distinta quando tem que recorrer ao título profissional.
A minha mãe, portuguesa, também foi emigrante na Alemanha no início da sua vida adulta. Depois, de volta a um Portugal de brandos costumes e num contexto conservador, engravidou. Engravidou e teve a ousadia de ser mãe. Criou uma filha sozinha, tendo que abdicar dos estudos e abraçar uma profissão não qualificada, o que a levou a uma situação de vulnerabilidade e carência social e económica importantes.
Foi com os meus pais que aprendi que a vida só faz sentido quando é partilhada, e que Deus tem um humor nem sempre fácil de entender.
Para além de me terem dado à luz, os meus pais têm em comum histórias de esperança, resiliência e de fé. Foi com eles que aprendi que devemos “rezar como se tudo dependesse de Deus e trabalhar como se tudo dependesse de nós”. Foi com eles que aprendi que a vida só faz sentido quando é partilhada, e que Deus tem um humor nem sempre fácil de entender, mas que podemos confiar que o seu plano, mais dia menos dia, fará sentido. Como poderia eu agora, que me é dada a oportunidade de retribuir a dádiva da minha própria vida, dizer que não ao desafio do CEPAC?
Quando olhamos para os fluxos migratórios, e verificamos que 3,3% da população mundial é migrante (224 milhões), que 40 milhões são deslocados e 22 milhões são refugiados (International Organization for Migration, 2018), tendemos achar que esta realidade é muito distante de nós e que, por isso, não nos diz respeito. Mas, olhando de perto, vemos que em Portugal residem atualmente perto de meio milhão de estrangeiros, cujo principal destino é Lisboa (43,5%), segundo dados do Alto Comissariado para as Migrações (ACM). A população com quem o CEPAC trabalha não se encontra, porém nestes dados do ACM, uma vez que são indivíduos, na sua grande maioria, indocumentados e, por isso, invisíveis para o sistema, com todas as implicações que a situação de irregularidade implica, concretamente no domínio da educação e da saúde.
Ao olharmos para dados do período homólogo anterior verificamos que a procura de respostas no CEPAC aumentou cerca de 50%. Os desafios são imensos na garantia de uma resposta de qualidade, célere e humanizada, capacitando cada um na realização do seu projeto de vida, através da concretização de um plano de intervenção social. Temos vindo a mobilizar esforços no sentido de garantir uma resposta adequada e individualizada aos nossos beneficiários, e sabemos que para isso contamos com o trabalho imensurável de tantos voluntários que todos os dias nos ajudam a tornar o CEPAC uma casa que acolhe, encaminha e capacita. Também fundamental tem sido o financiamento externo que temos recebido de organizações ou pessoas individuais como a Família Espiritana, LIAM e outras.
A luta pela sustentabilidade e pela garantia da capacidade de resposta será um dos grandes desafios para o próximo ano. Sabemos que os fluxos migratórios não vão desacelerar, e este é um grande desafio que se coloca à nossa sociedade e, de forma muito concreta, à Igreja Católica. Todos os cristãos devem estar focados a cuidar da casa comum, construindo uma sociedade em que todos tenham direito a um trabalho estável e decente, não permitir que “aumente a desconfiança no futuro e no nascimento de novas famílias e crianças”, como nos apela o Papa Francisco.