A reclamação não era comigo mas a irritação enchia a sala de espera. O homem protestava contra a exigência de tantos documentos para tratar o assunto que ali o levava. “Tantos papéis para quê? É como a hipotenusa! Obrigaram-nos na escola a aprender o quadrado da hipotenusa para quê? O que é que eu faço agora com o quadrado da hipotenusa?” Ia sugerir-lhe que o guardasse na gaveta onde está a raiz quadrada, mas contive-me a tempo, não fosse atirar-me com o quadrado dos catetos.
Assim é. Enchemos a vida e a religião, se não com papéis, com mil e uma coisas a que nunca vemos utilidade. Felizmente cada ano chega a Quaresma que nos leva, não digo a arrumar o quadrado da hipotenusa, mas a agarrar o essencial. Lava-nos e emagrece-nos de inutilidades e desperdícios, pois bem sabemos que é tempo de jejum e penitência.
Cada ano três gestos nos orientam como coordenadas de GPS, para não nos perdermos no caminho. Na quarta-feira de cinzas inclinamos a cabeça para receber as cinzas; na quinta-feira santa deixamos que nos lavem os pés; na sexta-feira santa dobramos o joelho para adorar a Cruz. No primeiro gesto olhamos para nós; no segundo olhamos para os outros; no terceiro olhamos para Deus. São três dimensões da espiritualidade cristã: olhar para nós e convertermo-nos; olhar os irmãos e servi-los; olhar a Deus e adorá-lo. Este é o itinerário que a Quaresma nos faz percorrer, sem desperdícios nem adornos.
A cinza na cabeça não engana no que diz. É um gesto de humildade, que significa: reconheço-me por aquilo que sou, uma criatura frágil, feita de terra e destinada à terra, mas também feita à imagem de Deus e destinada a Ele. O lava-pés não precisa de tradutor: por um lado, os nossos pés têm de ser lavados por Jesus; por outro, temos de lavar os pés uns aos outros, temos de servir. A adoração da Cruz dispensa legendas. “A adoração requer que nos curvemos e fiquemos em silêncio. Adorar a Deus não é tanto um dever, uma obrigação, mas um privilégio, uma necessidade. O homem precisa de algo majestoso para amar e adorar! Foi feito para isto. Portanto, não é Deus que precisa ser adorado, mas o homem que precisa adorar”, diz-nos Raniero Cantalamessa.
O quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos, aprendemos na escola a propósito do triângulo com um ângulo reto. Na quaresma dispensamos muitas coisas mas temos de agarrar este outro triângulo: Conversão, Serviço, Adoração.
O quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos, aprendemos na escola a propósito do triângulo com um ângulo reto. Na quaresma dispensamos muitas coisas mas temos de agarrar este outro triângulo: Conversão, Serviço, Adoração.
“Crónica” é uma rubrica mensal do jornal “Ação Missionária“, pelo P. Aristides Neiva